Dentro do Saco - Carlos H. F. Gomes



Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam suas histórias. Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história".


Dentro Do Saco

Carlos H. F. Gomes


            Ontem eu estava lendo um livro do nosso Monteiro Lobato, para amenizar as ideias. Ledo engano. Só o que consegui foi reviver uma tragédia há muito enterrada na cova das memórias de infância assim que li uma passagem na qual o autor escreveu que as crianças, quando se tornam adultos, fingem que não acreditam mais no que acreditavam.
            Ou algo assim.
            Na hora fechei o velho livro infantil e revivi na mente, sem controle, os horrores daquele antigo dia, quando eu tinha cinco anos e minha prima, sete. Ninguém da família foi o mesmo depois daquilo, principalmente a vó Luiza.
            Eu ansiava pelo nosso encontro de hoje. Preciso contar tudo, antes que exploda de vez e valho-me da generosidade de vocês, meus amigos queridos, e deste agradável vinho que ameniza as minhas ideias.
            Morei boa parte da infância com a vó Luiza e todo santo dia minha prima e eu íamos com ela na padaria, logo ali na esquina da Rua das Glicínias. Adorávamos aquele passeio de dois quarteirões, eu muito bem seguro pela mão esquerda e minha prima pela direita.
            Na esquina da Rua das Camélias, havia um homem sentado na calçada, com um saco marrom ao seu lado, tão encardido quanto ele. A vó Luiza tomou o cuidado de passar pelo meio da rua, apertando nossas pequenas mãos a ponto de doer muito. Eu, curioso, torci o pescoço o máximo que pude a fim investigar se era o tal “homem do saco” de quem a vó Luiza já havia nos alertado e conquistado, com isso, a nossa obediência; pelo menos quando ela estava por perto.
            O “homem do saco” morou naquela esquina por dias e espichava os olhos negros e miúdos para a minha prima quando passávamos. Cheguei a pedir para a vó Luiza me deixar em casa quando ia à padaria, mas isso estava fora de questão; tentei sugerir que mudássemos de caminho, indo por baixo, virando a esquerda na Rua dos Jacintos, a esquerda na esquina do PegPag, seguindo dois quarteirões pela Rua das Rosa, virando a esquerda outra vez e chegaríamos na padaria, mas isso implicava em mais que o dobro do caminho e ela tinha pressa.
A vó Luiza sempre tinha pressa. E eu tenho saudades dela.
Alguns dias depois, minha prima voltaria da escola acompanhada por uma amiguinha e sua mãe, que se comprometeu a deixa-la no portão de casa. Acredito que por medo do “homem do saco”, ela a deixou na esquina da Rua das Camélias. Aquele homem fez com que os hábitos dos moradores mudassem e a rua foi ficando deserta sem que percebêssemos.
Ela não chegava e cada vez mais ansiosa e sentindo que algo estava muito errado, a vó Luiza pediu ajuda para o tio do Alexandre, nosso vizinho, e uma verdadeira operação de busca e resgate fora organizada. O Alexandre, com seus nove anos de total destemor, foi até a escola, a vó Luiza foi até a casa da amiguinha da minha prima, carregando-me rápido pela mão, o tio do Alexandre dava telefonemas e ordens, e em poucos instantes as pessoas que evitavam sair de casa, estavam emprenhadas na busca da minha prima.
Voltamos apenas com um punhado de desculpas apressadas da mãe da amiguinha dela, que estava com a panela no fogo, e enquanto a vó Luiza implorava para que o doutor Vidal, o advogado que morava do outro lado da rua, fizesse alguma coisa para que minha prima aparecesse, eu olhava para o “homem do saco” que se preparava para abandonar a esquina que fora sua casa por alguns dias.
Quando ele jogou o saco encardido e fedorento nas costas, eu vi.
Meu deus! Eu vi a minha prima se mexendo dentro do saco!
Tentei chamar a atenção da minha avó, mas ela estava muito ocupada se desesperando. Tentei então mostrar o que eu via para o doutor, mas ele estava empenhado em fazer falsas promessas judiciais para a pobre vó Luiza.
Eu vi nitidamente os contornos de duas pequenas mãos inquietas tateando por dentro para encontrar uma saída daquele saco marrom. Sei que era ela porque os trejeitos daquelas mãozinhas eram os mesmos de quando ela saía de detrás da cortina da sala quando brincávamos de esconde-esconde.
O homem puxou o saco mais para cima e o contorno do rosto dela começou a se formar: a bola da cabeça empurrando o pano, a curva da testa e a ponta do nariz, aí ele deu mais um puxão para cima e ela deve ter caído no fundo.
O “homem do saco”, já pronto para ir embora com a menina desobediente dentro do saco, voltou os olhos pretos e miúdos para mim e uma mancha molhada se formou na frente da minha calça e foi se espalhando. Enquanto isso, a cabeça da minha prima forçou passagem novamente pelo pano horrível do saco e vi o espantoso contorno do seu nariz e da sua boca muito aberta, com as mãozinhas fazendo o máximo de força que podia, como uma vez que ela se enrolou na cortina e não conseguia sair.
Dei um grito histérico, apontando para o “homem do saco”, enquanto ele virava a esquina. Foi o suficiente para que os adultos da rua, esquecidos há muito do que é ser criança, se dessem conta do real perigo que o “homem do saco” representava.
Ele correu, mas foi alcançado pelo tio do Alexandre lá na Rua das Rosas, em frente ao PegPag, e espancado a vontade, sob impropérios, acusações e mais um monte de porrada, enquanto o Alexandre, corajoso que era, procurava minha prima dentro do saco.
Desculpem, não consigo mais falar sobre isso.
Não quero mais falar sobre isso!


Comentários

  1. Acho que o homem do saco, ou o velho do saco, como diziamos na minha infância lá no RS é uma das lendas urbanas mais assustadoras que conheço! Parabéns pelo conto!

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    1. Muito obrigado, Marcia! Ainda me lembro desse "homem do saco" aí do conto.

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