Mula Sem Cabeça - Carlos H. F. Gomes



Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.


MULA SEM CABEÇA



Carlos H. F. Gomes


Fazia um frio de geada naquela noite estrelada de São João e a venda do Seu “Nerso” estava em festa. A tarde foi de preparativos com os fregueses bêbados equilibristas trepados nas árvores para amarrar as bandeirinhas que cruzavam o terreiro, outros ébrios que levavam a cabo uma verdadeira operação militar para capturar o porco que seria assado, mais dois tentando colocar o pau de sebo no buraco cavado no meio do terreiro. Quando enfim conseguiram, o Seu Nelson apareceu gritando, piscando o olho esquerdo e repuxando o canto da boca, enquanto seu dente de ouro brilhava. Esqueceram-se de pregar no alto do pau de sebo a caixinha cuja lenda reza que havia nela “mil conto”.
Meu amigo Tonho passou o dia montado na Cida, a sua mula. Disseram que o maluco chegou a ir até o Setúbal, depois da represa! Eu evitava pensar ou até mesmo perguntar o que havia além daquela subida, ladeada por canaviais, depois da venda do Seu Nelson; o simples nome “Setúbo”, como era pronunciado por bocas moles e tortas de tanta pinga, envolvia o bairro em uma aura sombria no meu imaginário medroso. Mas aquele moleque encardido, de cara suja e que não se preocupava em tirar o pijama antes de sair por aí sentado no lombo da Cida, era destemido. Um dia a Betinha, a filha mais velha do Seu Estevão, o nosso caseiro, me disse de maneira jocosa que o Tonho era “filho do padre”. Se sua intenção era desmerecer meu amigo, não deu certo comigo; como eu queria ter pelo menos um pouco daquela coragem.
A festa de São João estava barulhenta, com um trio que mal parava em pé tocando sanfona, violão e triângulo, tentando cantar músicas caipiras que falavam de amor, roça, passarinhos cantando e morte, muitas bombinhas pipocando pelo chão, uma fogueira larga e alta, o porco já assado sendo servido, a molecada correndo por todo canto e um monte de bêbado tentando subir no pau de sebo, sendo ajudados por outros bêbados. O Seu Nelson, atrás do balcão, piscava o olho e levantava o canto da boca, feliz da vida; dava para ver o reflexo do seu dente de ouro nas garrafas de cachaça com cobras de todo tipo dentro.
Minha mãe, sentada no banco bambo de madeira, rendera-se ao clima de festa e comia um teco do porco que a mulher do Seu “Nerso” lhe ofereceu, enquanto ouvia com atenção ela contar que o Tonho era filho de uma certa Maria Aparecida e que esta sumira do mapa após dizerem à boca miúda que ela era mulher do padre José, lá da “paróca do Setúbo”. Enquanto lambia os dedos, dividia sua atenção entre ouvir o causo contado pela nova amiga e o meu pai, tomando conta para que ele não fizesse a burrada de tentar subir no pau de sebo depois de ter bebido; o coitado pensava que a enganava, mas ela sabia que pelo menos umas três cachaças já tinham descido pela goela do marido.
Mas não havia com que se preocupar, pois ele estava mesmo era interessado em ver o Bigode ganhar fácil um bom dinheiro apostado na sinuca por algum valente desavisado da cidade. Eu comia uma deliciosa canjica que o Seu Nelson me deu numa cumbuca de barro, com duas gotas de cachaça, e também prestava atenção à história do meu amigo. A mulher dizia que a Maria Aparecida nunca mais fora vista e o “Nerso” e ela passaram a cuidar do menino como se filho deles fosse. Uns dias depois do sumiço da mãe, o Tonho apareceu com a mula marrom e não desgrudou mais dela; disse que a encontrou lá no “Setúbo”.
De repente a criançada toda passou gritando pela porta da venda em direção ao terreiro e o Tonho enfiou pela porta a cabeça penteada, de cara limpa e bochechas vermelhas, e gritou: “Eita que o Chico Caoio vai sortá o balão! Bora, gente mole!”
Corri atrás dele, driblando com dificuldade as gentes grandes que insistiam em ficar na frente. Lá na ponta do terreiro, o Chico Caolho acendia a tocha e esperava até que o ar quente enchesse o balão. No pau de sebo, o Jão Ossudo, magrelo como ele só, quase conseguiu pegar a caixinha com “mil conto”, mas escorregou sebo a baixo, estatelando-se no chão e seu chapéu rolou até perto da Cida.
Vendo pelo rabo do olho aquela coisa rolando para o seu lado, a mula relinchou e deu uns passinhos miúdos para longe do chapéu, chegando mais perto da fogueira. O Chico Caoio deixou o balão subir, indo para os lados de Mairinque, levado pelo vento, e todos bateram palmas, torcendo para que o balão de “Sum Jão véio” fosse longe. O vermelho da cachaça e da fogueira refletia-se em seus rostos e esticava suas sombras trêmulas na parede de pau a pique da venda, formando um teatro de atores sinistros.
Não sei explicar, mas eu estava com uma forte sensação de que daria merda. Procurei pelo meu pai entre as sombras avermelhadas e não o encontrei.
Um vento vindo lá dos lados do Setúbal começou a levantar poeira e foi crescendo a ponto de levantar chapéus e saias. O fogo alto e largo da fogueira rodopiou e a mula relinchou como se fosse um gemido alto de gente, um braço de fogo fez uma curva de baixo para cima e se enrolou no pescoço dela.
A Cida corria e dava pinotes e relinchava alto e esganiçado. Sua cabeça estava em chamas!
O Tonho gritava alto e esganiçado, os braços esticados em direção à mula. Ele esperneava, mas estava bem seguro pelo Seu “Nerso”, que piscava sem parar o olho esquerdo e a boca repuxava ainda mais, seu dente de ouro reluzindo em resposta à cabeça em chamas da mula.

Comentários

  1. Respostas
    1. Boa, Marcão! Acho que eu também correria, sem olhar para trás!

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  2. Uma história de S,João diferente de Portugal.Que esconde Setubo que escondem as velhas lendas tradicionais de pequenos lugares onde o povo se torna protagonista das suas próprias mentes .Porque o fogo enlaçou a cabeça da mula ? Que algo sinistro veio trazer aos habitantes aquela mudança de tempo?
    Contada numa noite por cinco autores cada um contando sua história

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    1. Rosa, muito obrigado pelo seu carinho! O folclore brasileiro é cheio de criaturas fantásticas maravilhosas.

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