Os Cadáveres em Férias e os Carniceiros - Carlos H. F. Gomes
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
Os Cadáveres em Férias e os Carniceiros
Carlos H. F. Gomes
Não
sei onde eu estava com a cabeça!
Eu
só queria passar as férias em um lugar tranquilo com minha esposa e meu filho. Aluguei
a chácara mais afastada para ficarmos longe de tudo, só curtindo o sossego. A
casa era boa, o tempo estava bom, trouxemos mantimentos suficientes para
ficarmos o quanto quiséssemos, mas não deu certo. Outra vez não deu certo. Aliás,
deu muito errado. Não tanto quanto da última vez, é verdade, mas chegamos e fomos
embora no mesmo dia com o que sobrou da família.
Eu
estava mesmo com um mau pressentimento. Desde que saímos da casa da Maria e do
Carlinhos, urubus seguiram o carro fazendo aquelas voltas no céu que deixam
qualquer carniça com os nervos a flor da pele e assim que chegamos à chácara, fomos
atacados pelos desgraçados.
Enquanto
eu levava a Maria para dentro, um deles deu um rasante e tentou empoleirar-se
nela. Quase a deixei cair no chão, mas consegui segurá-la e dar uma porrada no bicho.
Ele foi se empoleirar na capota do carro e de lá grasnou para a corja de outros
três urubus que observavam empoleirados no telhado da casa. Eles voaram rápido
até o carro e brigaram entre si para ver quem atacaria primeiro o Carlinhos.
No
desespero, soltei a Maria no chão e corri para socorrer meu filho ainda preso
na cadeirinha pelo cinto de segurança. Rugi como um pai que protege sua cria e
peguei o que estava para fora jogando-o para trás. Os grasnados soavam como um
alerta de morte e penas pretas esparramavam-se num redemoinho tétrico como
fumaça em uma corrida macabra. Minhas mãos agarraram outros dois que foram
puxados com violência para fora do carro e o último voou desajeitado pela
janela do outro lado, levando algo no bico.
O
pior drama da minha vida foi não saber a quem salvar primeiro. Não, mentira!
Aquele não foi o pior drama. Não, nem de longe. Mas foi a segunda vez que
nossas férias foram interrompidas e isso acabou de me irritar de vez. Como se
não bastasse ter aguentado o mau cheiro durante a viagem toda e não poder
sequer abrir os vidros escuros do carro, ainda precisei lutar com carniceiros
depravados que queriam comer minha família. De jeito nenhum eu aguentaria
perdê-los outra vez; poderíamos tentar tirar férias em outro momento, talvez
fora de temporada, isso seria o de menos. Tentar de novo, recomeçar.
O
urubu que fugiu pela janela, empoleirou-se no telhado enquanto mastigava o que
verifiquei ser o olho esquerdo do Carlinhos. Eu já havia soltado o cinto para
tirá-lo de lá, quando voltei-me para ver onde os outros estavam. Um rugido
gutural irrompeu de mim assim que os vi mordendo e arrancando nacos da barriga
da Maria. Corri como louco para eles, levantando poeira atrás dos meus passos furiosos,
e suas três cabeças levantaram-se em minha direção. Com tecos da minha esposa
nos bicos eles levantaram voo, desajeitados e pesados, empoleirando-se ao lado
do companheiro de carniça.
Ajoelhei-me
ao lado da Maria e coloquei para dentro dela o que eles haviam espalhado pelo
chão. O fedor tornou-se deveras real naquele momento, trazendo à tona um recorte
de lembranças ainda frescas daquela manhã quando fui buscá-los. Não havia ali naquele
instante de reflexão a terra úmida e seu cheiro quase adocicado para me
distrair; era a realidade indesejada entrando pelas minhas narinas em uma
tentativa de convencer-me, de conscientizar-me.
Um
baque de corpo caindo no chão despertou-me. Olhei por sobre o ombro e haviam
dois cachorros cinza, com as costelas fazendo relevo no pelo despenteado,
brincando de cabo de guerra com o Carlinhos. Os quatro urubus olhavam a cena preocupados,
grasnando seus protestos de boca cheia, enquanto mastigavam pedaços da minha
família.
Cresci
em volume e fúria na direção dos chacais e eles soltaram meu menino, arreganhando
os dentes sujos e pontudos para mim. Não me acovardei e dei um chutaço no
primeiro, que levou junto um pedaço da minha calça e foi se estatelar na
lataria do carro com um baque surdo, soltando um ganido e deixando um amassado
ali um amassado. O outro, covarde, mordeu minha perna por trás. Com o sangue
borbulhando nas veias, levantei o esquelético cachorro do mato por onde minha
mão o alcançou e joguei-o no chão com toda minha força furiosa, deixando-o
tonto e manco. Os malditos não fugiram e enquanto eu pegava o Carlinhos para
colocá-lo de volta no carro, as bestas voltaram a atacar.
Um
deles logrou levar para o meio do mato, ainda que manquitolando, o braço
direito do meu filho, no momento em que o outro cravou os dentes no seu pé,
saindo com um pedaço muito menos generoso que o outro. Joguei-o dentro do carro,
bati a porta e ela não fechou; bati outra vez com mais força e desta feita ela
fechou. Fui buscar a Maria que novamente tinha a barriga revirada e beliscada
pelos negros chacais alados. Consegui pegar de volta algo comprido e cheio de
gomos que um deles tentava carregar para o telhando, enrolei e guardei o que
podia na barriga dela, carreguei-a no colo até o carro, joguei-a no banco da
frente e bati a porta.
Dei
a volta correndo e quando ia entrar no carro, um dos cachorros saiu do mato,
pulou sobre mim e tentou abocanhar meu pescoço, mas só conseguiu morder o braço
esquerdo. Enforquei o maldito imprimindo em minha mão direita toda a carga
insuportável de todo o desespero da minha vida. Seus movimentos brutos passaram
a ser desesperados e suas patas furaram e arranhavam minha carne sem que eu
sentisse, até que ele se debateu sem forças, frouxo, mole. Joguei-o como um
trapo no chão, entrei no carro, liguei e acelerei, derrapando na terra, enquanto
fechava os vidros elétricos.
Quando
chegamos na casa da Maria e do Carlinhos, pude ver o estrago causado: quase
tudo o que havia dentro da barriga da Maria havia sido devorado e o Carlinhos,
tadinho, além de estar se um bracinho e um pezinho, estava sem cabeça. Deve ter
caído na hora que o coloquei no carro e não percebi, mas em compensação havia
em seu colo a cabeça de um dos carniceiros e sangue esparramado pelo vidro.
Senti
muita dor pelo corpo todo e as mordidas latejavam, ardiam. Quando o sangue
esfria, todo o sofrimento emerge com uma fúria desnecessária. Mas no momento eu
não tinha tempo para pensar; precisava cavar e colocar o Carlinhos e a Maria
para dormir novamente.
Depois,
exausto, larguei-me ao lado da cama subterrânea deles e como quem entra devagar
e sem perceber no torpor do sono, entrei no desespero abissal da culpa e da não
aceitação.
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