Rua dos Andrasdas, 193 - Natasja Haia
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Natasja ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
Rua dos Andradas, 193
Natasja Haia
Isis caminhava durante a manhã de mais um inverno rigoroso na capital do
RS, Porto Alegre. A igreja das Dores estava encoberta pela neblina, e a solidão
ressoava memórias. Nunca sabemos quando as mudanças irão advir e as nuvens
decidirão que é a hora da tempestade. Seus olhos castanhos lacrimejavam e suas
mãos acariciavam seus braços na tentativa de se aquecer, cada passo a levava em
direção ao seu novo endereço, um apartamento no edifício 193.
A primeira semana transcorreu rapidamente, o local já estava arrumado e
com cheiro de tinta fresca. Mas os dias ainda eram frios e aparentemente
vazios. Ao lado direito havia uma república feminina e em frente residia um
professor de piano. Com as saídas diárias de Isis para aproveitar uma das ruas
mais famosas da capital Gaúcha, não tardou para que conhecesse Mel, uma jovem
de aproximadamente 20 anos, pele clara, e um olhar angelical, mas um tanto que
misterioso.
À medida que os dias passavam, a amizade se fortalecia, e suas solidões
se encontravam, em uma rara sintonia. Eram caminhadas até o Gasômetro, idas ao
supermercado, visitas ao museu Mario Quintana, confidências. Isis era nova na
cidade, jovem, rebelde e com uma vida repleta de muitos finais. Na noite do
décimo quinto dia, do quarto mês, elas se reuniram na Sala do apartamento de
Isis, para beber umas cervejas e conversar.
Isis
Já estávamos na décima cerveja, ao fundo o som do piano se misturava as
palavras da Mel, e eu divagava entre palavras não ditas e memórias de rostos
embaçados. Ela falava sem parar, contava sobre seus pais, seus irmãos e a
infância em uma fazenda próxima a divisa com o Uruguai, além das longas
histórias sobre seu namorado de olhos azuis penetrantes, que até o momento eu
nunca havia visto. Ela parecia venerá-lo, mas alternava momentos de êxtase
seguidos de olhares agonizantes que me deixavam confusa. O nome dele era
Joseph, tinha 25 anos, militar, segundo ela, era alto, de uma beleza ímpar e os
dois estavam perdidamente apaixonados. Haviam duas coisas que eram impossíveis
de não reparar. A aliança reluzente e a profunda cicatriz no canto superior da
sua testa, que ela dizia não lembrar como tinha a adquirido.
Quando olhamos, os primeiros raios de sol já ultrapassavam a janela e
atingiam nossa face. Eu tinha saudade da minha família, dos amigos, e da minha
quente cidade no interior da Bahia. Todo meu apego foi entregue, sem ressalvas,
a Mel, mas aquela, sem que soubesse seria a última vez que a veria. Durante os
dois meses subsequentes eu não a vi, a procurei na República, mas a mulher rude
de quem ela sempre comentava só me informava, grosseiramente, que ela já não
morava mais lá, e em seguida, resmungando, batia a porta. Eu sentia uma mistura
de saudade e raiva. Não poderia compreender. Por que? Indagava-me
persistentemente.
O professor de piano
Como de costume, aquela manhã eu acordei cedo, aproximadamente às cinco
e meia. Antes que eu tocasse as primeiras notas musicais, três leves batidas
foram dadas na minha porta. Era uma garota alta, olhos desconfiados e cabelo
lindamente alourado. A princípio minha nova aluna de piano. À medida que as
aulas transcorriam, ela demonstrava ter um talento impressionante, e entre uma
nota e outra, relatava, sempre sem detalhes e com um olhar distante, algumas
despedidas. O namorado e os avós que a criaram que já haviam partido, os amigos
que havia perdido.
Mas foi na nossa décima quinta aula
que um acontecimento nos marcaria, e principalmente, a mudaria. Uma chocante e
transformadora revelação.
Isis
Eu resolvi fazer aulas de piano para me libertar. Não imaginava qual
seria o tipo de libertação que a misteriosa ciranda dos encontros e despedidas
me reservava. O professor era meu vizinho, um homem alto, moreno avermelhado,
olhos negros hipnotizantes, parecia transcender meu corpo e descobrir todos os
meus segredos e receios.
Não demorou para que eu contasse a ele sobre a Mel. Sua reação foi a
mais inusitada, seus olhos pareceram saltar e era possível ver a veia no seu
pescoço pulsar. Foi quando eu descobri o que havia acontecido, ou melhor,
quando soube que jamais saberia como ela entrou em minha vida e para onde havia
ido.
Todos no edifício evitavam o assunto. Há exatamente, dois anos e 53
dias, as páginas dos principais jornais da cidade estampavam a foto de uma
linda jovem assassinada e esquartejada pelo namorado. Deixada em pedaços, à
deriva, nas margens do rio Guaíba. Assassino: Joseph Ribeiro, um jovem militar
de olhos cintilantes.
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