Visitantes do Silêncio - Morphine Epiphany


Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Morphine Epiphany ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



Visitantes do Silêncio

Morphine Epiphany




Quando Fabiana ainda era muito pequena, recebia a visita de várias pessoas que já haviam partido. Aos seis anos, enquanto assistia aos desenhos animados presenciou a visita de seu avô. Ela não se recordava de todos os seus traços, mas algumas características eram fortes em sua mente.
Seu avô Manoel morrera de cirrose hepática quando a garotinha tinha apenas dois anos de idade. O abraço dele permanecia firme ao redor de seu corpo e o olhar de ternura que ele esbanjava ficaram eternizados em sua memória.
Naquela tarde, quatro anos após a morte de Manoel, os pelos de seu bracinho se arrepiaram no instante em que o avô se instalou na cozinha trajando uma calça escura e uma camisa marrom. Ele ficou encostado na porta da cozinha, olhando para o vazio.
A menina se levantou e correu na direção do senhor. Queria abraçá-lo, mostrar o quanto cresceu e até mostrar a sua boneca nova, mas o esforço foi inútil. A figura do avô desapareceu rapidamente. Ele não escutou seu chamado, não esperou o seu abraço, apenas se foi.
Com o passar dos anos, Fabiana se deparou com diversos visitantes. Algumas crianças, outros adultos. Rostos conhecidos, rostos desconhecidos. Na maioria das vezes, eles não a escutavam, alguns olhavam diretamente em seus olhos, outros simplesmente vagavam repentinamente sem rumo.
Ela tentou contar para os membros da sua família e até amigos, mas a grande maioria gargalhava da menina. Não conseguiam acreditar na possibilidade da existência de fantasmas ou espíritos que andavam por aí. Sua mãe pensou em interná-la.
As visitas se tornaram recorrentes e começaram a refletir no dia a dia da garota. Era sempre muito desgastante. As aparições pareciam consumir uma energia intensa e aos poucos levavam um pouco de sua vida.
Agora, Fabiana estava ali quase vinte anos depois, diante daquele médico reclamando de uma fadiga extrema, dores insuportáveis que se assemelhavam a garras sobrenaturais rasgando as camadas de sua pele. Não conseguia mais se alimentar, passava os dias na cama, tomando remédios controlados. Chegou a passar dois dias seguidos dormindo sem interrupção e já não possuía energia para trabalhar, estudar. Sem energia para viver.
Os médicos alegavam fadiga crônica, outros atestavam estresse, depressão. Nenhum deles sabia exatamente o que estava acontecendo com a jovem. Alguns atribuíam o seu estado atual aos acontecimentos trágicos que lhe dominaram nos últimos anos.
O pai de Fabiana havia morrido há dois anos atropelado por um caminhão. Três meses depois, sua mãe morrera devido a complicações de uma pneumonia grave. E após a perda de sua mãe, com apenas quinze dias de luto, Fabiana perdeu o noivo. Marcelo, já tinha marcado a data do casamento, estava feliz, tinha um cargo novo na empresa e drasticamente sofreu um AVC enquanto jogava futebol com os amigos do bairro.
Apesar de todas as perdas, Fabiana se acostumara com os mortos. Ela os via, acenava para eles e conversava com seus entes nos sonhos. Os médicos recomendaram repouso, remédios e um pouco de fé. Eles já não compreendiam aquele caso.
A jovem passou na farmácia, preencheu a bolsa com pílulas, confessou seus sintomas para Valdir, o dono da farmácia e depois seguiu rumo ao seu bairro. Ao chegar em casa, a televisão da sala estava ligada. Um telejornal surgia na tela e a fumaça de um charuto dominava o ambiente.
Foi até a cozinha e o cheiro das panelas com comida fresca penetraram suas narinas. A pia estava uma bagunça, cheia de copos, talheres usados e panelas. Alguns temperos espalhados, legumes usados. Fabiana procurou um copo limpo, abriu a bolsa, pegou um comprimido e com a água ingeriu a dose de meia-vida.
Pálida, com as costelas saltadas, uma febre que nunca cessava, sem paladar e dezenas de sintomas a incomodavam. Ela repetia para si mesma até virar um mantra:
— Estresse, depressão ou fadiga? Só pode ser uma dessas opções ou a junção de todas elas!
Jogou-se na cama, sentindo cada célula de seu corpo se revirando de maneira monstruosa. O chuveiro estava ligado. Ela não deu atenção.
As manchas sombrias surgiram no teto, o ruído da televisão vindo da sala se tornou abominável, perfuravam os tímpanos de Fabiana e ativavam as dores. Agulhas, facas, espadas, todas elas atravessando a matéria dela.
Seu nariz começou a sangrar com a fumaça vindo da cozinha. O odor ocupava a casa inteira. Fabiana se contorcia. O comprimido que havia ingerido resolveu voltar. O cheiro da comida agora era podre, o incêndio tomara conta de cada canto. Fabiana vomitou sangue.
Não sobrara vestígios de sua aparência. Definhava em segundos. Uma falha elétrica vinda do chuveiro invadiu o quarto. A luminária afiada no teto do quarto, estremeceu.
Sua mãe, seu pai, seu avô e seu noivo surgiram ao redor da cama de Fabiana. Ela os observou com carinho. Todos estavam com uma expressão amena e convidativa. Sorriram para ela. A jovem sorriu de volta no instante em que a luminária atingiu seu peito.
O quarto foi tomado pelo fogo e Fabiana caminhou com os outros pelo fogo, observando o resto de sua matéria se transformando em cinzas.

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