Anjo da Morte - C. B. Kaihatsu
Anjo da Morte
C. B. Kaihatsu
“E quando ela adoeceu – e morreu –
a abençoastes!
Como podeis cumprir tais ritos,
cantar-lhe o funéreo hino?
Como, se vosso olho é maldito,
vossa língua viperina?
Se a inocência roubastes a quem tão
jovem matastes?”
(Lenore – Edgar Allan Poe)
A
casa toda estava imersa num breu, exceto o quarto que era parcialmente
iluminado pela chama de uma vela. Relâmpagos rasgavam o céu, os pingos de chuva
caíam furiosamente no telhado, o barulho do vento castigando a copa das árvores
mais parecia um lamurio, era a natureza fazendo uma sinfonia insana.
Augusto
observava vidrado a vela queimar, tentava não pensar em coisa alguma. Ele supôs
que, talvez, se conseguisse concentrar-se em algo, como apenas observar a chama
se extinguir, manteria sua sanidade.
Havia
dois dias que o homem não dormia. Trancou-se em casa com medo do que vira, nunca
fora religioso, mas nessas duas noites que passou em claro, ele pediu para que
Deus tivesse piedade de sua alma.
Jamais
conseguiria esquecer daqueles olhos. Olhos que outrora lhe enchiam o peito de
felicidade, agora eram soturnos e sem vida. Ainda carregava em seu íntimo a
culpa por desvencilhar-se dela. Sentiu repulsa ao ver o cadáver demasiado
pálido de sua finada noiva. Suas mãos, macias em vida, já se mostravam
carcomidas. O cheiro de carne putrefata alastrou-se quando os outros cadáveres emergiram
de seus túmulos. Augusto correu como nunca, contudo, ainda olhou para trás uma
última vez e viu o olhar colérico que sua amada Olga lhe lançou.
Refugiou-se
em sua casa, como se essa fosse uma fortaleza. Sabia que sua queda era iminente,
entretanto, tentaria resistir o máximo possível. A chuva apertou, a sinfonia
que se fazia lá fora era macabra, aumentando o desespero de Augusto ainda mais.
Ele
não sabia o motivo de Olga querer vingar-se no pós-morte, uma vez que haviam
sido felizes em vida. Desde que a conhecera sua vida fora devotada a ela até o
dia de sua morte.
Olga
foi acometida por um doença, até então desconhecida, e veio a óbito em poucos
dias, Augusto não encontrava-se na cidade, porém conseguiu chegar a tempo para
o velório. Ela estava vestida com um vestido branco, na cabeça uma coroa de
margaridas, parecia uma noiva.
No
que se transformara sua amada? Se ela possuísse asas, diria que seria tal qual
uma Willi, personagem do libreto do
poeta Théophile Gautier para o famoso ballet Giselle. As willis eram espectros de noivas que morreram antes do casamento.
Contudo, eram descritas como fantasmas de beleza etérea, já Olga estava entre o
nefando e o etéreo.
O
ritmo do coração de Augusto estava cada vez mais acelerado, ele pensou que
talvez morreria de um ataque cardíaco antes que Olga viesse busca-lo e leva-lo
para o que há além da vida.
Em
meio ao som do vento, ele pôde identificar múrmuros que à medida que se
aproximavam, ficavam mais audíveis e inteligíveis. Várias vozes que diziam em
um coro, “Augusto, aquele que é sagrado.
És sagrado apenas no nome, sua alma é blasfema e em breve será nossa!
Apressa-te a confessar seus pecados, nós vamos buscar sua alma!”.
Augusto
foi tomado de pavor, não sabia se o que ouviu era real, se estava dormindo e
tendo um terrível pesadelo, ou ainda se estava perdendo a sanidade. Pensou que
talvez fosse a última opção, seus nervos estavam em frangalhos.
A
vela que estava a queimar terminou como o findar de uma vida. Enquanto tateava
em seu bolso à procura do isqueiro, o homem lembrou-se das histórias que lhe
foram contadas da mitologia grega, sobretudo a das Moiras, responsáveis por
determinar a duração da existência de cada indivíduo. Amaldiçoaria as três
irmãs por terem partido o fio da vida de Olga antes do dele e no auge de sua
juventude. Desafiaria os deuses se preciso fosse, ou, tal como Orfeu faria um
acordo com Hades.
Junto
com a nova chama sombras fantasmagóricas surgiram na parede, no início pareciam
formas de seres monstruosos, essas formas tomaram novos contornos de silhuetas
humanas. Elas se contorciam com o tremeluzir das chamas, gritos e lamentos
ecoavam pelas paredes, deixando Augusto atordoado.
“Você nos deixou queimar
e em breve queimará também!”, diziam as sombras. As
vozes começaram a proferir frases desconexas e logo se transformaram em
ensurdecedores urros de dor.
O
calor daquela pequena chama tornou-se extraordinariamente intenso, Augusto
suava em bicas, sua pele começou a arder. “Você
queimará! Juntar-se-á a nós”. Soprou o mais forte que pôde, mas a vela não
apagou. Nem a água a fez cessar. Desesperado, Augusto atirou a vela pela
janela.
As
sombras sumiram, mas ele sentiu uma presença, sabia que não estava sozinho. O
calor deu lugar a um frio excessivo. Todo o seu corpo tremia, suas mãos estavam
congelando, mal conseguia mover os dedos. Pelo menos aquelas almas sofredoras
se foram, ele pensou. Ledo engano pensar que na escuridão teria melhor sorte.
Havia
algo no ar que estava sufocando-o, sentiu uma brisa gélida que passava pelos
seus pulsos e tornozelos, fechando-se em torno deles como se uma mão o
estivesse tocando. Mãos invisíveis também se fecharam em volta de seu pescoço.
Augusto não conseguia respirar, tentou em vão gritar, não conseguia emitir som
algum.
O
homem sentia as mãos imateriais apertarem ainda mais seus pulsos, tornozelos e
pescoço. Um voz feminina sussurrou em seu ouvido a mesma frase repetidas vezes.
A princípio ele não havia reconhecido, mas depois a identificou com uma citação
da tragédia shakespeariana “Romeu e Julieta”. Era uma das falas de Benvólio
Montecchio, primo de Romeu. “Ah! Que
aparência tenha amor tão branda, mas, de fato, seja áspero e tirano!”.
Augusto pensou na ironia que a vida havia lhe preparado, ser aterrorizado com
as palavras de uma tragédia de dois amantes.
Augusto
conseguiu desvencilhar um dos pulsos e alcançou o isqueiro no bolso. A pequena
chama fez o que quer que fosse desaparecer como mágica. O clima do ambiente
ficou ameno e a chuva cessou.
Confiou
sua vida aquela pequena chama, sua intuição lhe dizia que enquanto ela
estivesse acesa, estaria a salvo. Estava quase vencido pelo cansaço, mas sabia
que não poderia dormir. Precisava estar preparado para os seus algozes.
Apesar
da tranca, reforçada no dia anterior, a maçaneta girou e a porta se abriu com
facilidade. Augusto viu a imagem da qual esteve fugindo nos últimos dias, Olga.
Ela parecia um anjo, um anjo da morte. Não estava viva, contudo, tampouco
aparentava estar completamente morta. Seus doces olhos agora tinham uma
aparência demoníaca que pareciam enxergar-lhe a alma.
Um
séquito de jovens acompanhavam Olga, algumas em estágio de decomposição mais
avançado que o das outras. Antes que Augusto pudesse dizer alguma coisa, Olga
tomou a palavra.
—
Ah! Por que me abandonaste, Augusto? Quando me deu um anel e seu coração disse
que estaria sempre comigo. Mas tu me abandonaste para morrer sozinha.
—
Nunca! Amei-te até o findar de sua vida! Amo-te agora também!
—
Mentira! És um grande mentiroso! Pensas que não vejo o horror em seu olhos ao
mirar-me?
—
Como todo ser vivente, o meu horror é à morte! Nunca a ti! Eu não sei o que lhe
fiz, ou qual seria o meu pecado mortal! No entanto, diante de ti e de nosso
Senhor — disse segurando o crucifixo que trazia no peito, presente de Olga para
protege-lo, a despeito de sua pouca fé — eu peço perdão pelo mal que,
porventura, eu tenha lhe causado.
—
Palavras vazias de significado são o que saem de sua boca enganadora! Mas hoje
receberás o castigo que merece!
—
Já que és acusadora, juíza e executora, poderia ao menos saber quais são os
crimes tão hediondos que dizes que cometi?
Olga
ponderou por um momento, mas assentiu. Apesar do coração ferido, ainda sentia
amor por Augusto.
—
Tua cobiça fora maior que o amor que dizia ter por mim. Deixou-me sozinha para
morrer para ir atrás das incalculáveis riquezas que lhe prometeram. Eu nunca
lhe pedi riquezas, meu amante embusteiro.
—
Não me tome por um embuste, Olga. Tudo o que fiz foi pensando em ti!
—
Em mim? Quando me traíste também foi pensando em mim? Minha morte fora
dolorosa. Sucumbi de tristeza, enferma e solitária.
—
Sempre fui fiel a ti! Se algo diferente lhe foi dito, afirmo com veemência que
estavas cercada de Iagos[1]!
—
Já basta de suas mentiras! Eis que chegou a hora de nos unirmos na morte!
—
Se assim deseja, assim será!
Augusto
resignou-se, aceitaria o que fosse lhe acontecer sem protestar. Olga
aproximou-se e acariciou o rosto dele com suas mãos, ou o que restara delas. Os
lábios frios dela tocaram os dele. O último beijo que ele não pôde lhe dar em
vida. Esse era um beijo da morte. Augusto sentiu a vida esvair-se de seu corpo
aos poucos. As mulheres que acompanhavam começaram a beijá-lo também. Seu
pescoço, ombros, braços, ele sentia as garras da morte em cada beijo.
Quando
o corpo de Augusto jazia sem vida no chão, Olga e suas aliadas sumiram na
escuridão. Fora encontrado por seus companheiros de saques, quando estes deram
por falta dele. Ninguém soube explicar o que levara o homem ao óbito. Uma
porção de lendas surgiram acerca de sua morte misteriosa.
Para
honrá-lo, seus amigos lhe fizeram um sepultamento digno, sua sepultura foi ao
lado da de Olga. “Enfim juntos, na vida e
na morte”.
Aqueles
que ousavam entrar no cemitério à noite diziam ver uma mulher de branco chorar
no sepulcro de Augusto.
[1]
Iago é personagem de ‘Otelo’, famosa obra de William Shakespeare. Iago induz
Otelo a pensar que sua esposa Desdêmona havia lhe traído.
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