Vingança - Naiane Nara
Vingança
Naiane Nara
Não
estávamos preparados para o que viveríamos.
De
fato, era bastante difícil entender os acontecimentos da minha cidade natal
naquelas últimas semanas. Veja bem, não era nenhuma São Paulo, mas mesmo para
uma cidade de tamanho diminuto processar o horror estava sendo exaustivo e
preocupante.
Quatro
mulheres mortas no espaço de alguns poucos dias. Todas com profundas lacerações
no pescoço. Nenhum grito, nenhuma marca, nenhuma testemunha. Ninguém sabia
exatamente quando ou por quê, mas estava no ar que aconteceria de novo. Mas
como se proteger do que não se sabe?
A
manhã estava enevoada, e o vento era forte, respirei fundo e levantei o olhar
para os céus. Aprendi a gostar desse tempo porque ficava mais calma, centrada.
Eu precisava disso mesmo.
Toque
de recolher, medo e desassossego. As pessoas evitando se visitar e até mesmo
trabalhar. Acenei para o dono do mercado do bairro que baixava suas portas, e
ele mal me viu, olhava para os lados, com pressa e medo. Suas duas filhas a
muito não via, desde que tudo isso começou.
Claro
que eu precisava me arriscar indo até o escritório, mas ao menos estaria segura
enquanto trabalhava. Era o que esperava.
Ao
chegar, percebi poucas pessoas na copa. Isso era bom: eu poderia tomar meu café
em paz e aproveitar um arremedo de silêncio.
Sussurros
se espalharam pelos corredores, parecia que ninguém tinha coragem de expressar
seus medos em voz alta demais. Estabeleceram um padrão, diziam eles. Pouco
depois das dez da manhã, já haviam passado cinco colegas pela minha sala, a
perguntar se eu estava bem e se tinha companhia para o almoço.
Recebi
olhares intensos durante toda a manhã, e quando finalmente saí, entendi o porquê.
Na pequena TV do restaurante, a jornalista dava mais detalhes:
— É isso
mesmo. O padrão foi identificado por especialistas. Todas as mulheres
envolvidas, além da idade próxima, entre 25 e 30 anos, eram historiadoras,
amantes fervorosas do período Tudor. Em suas casas, vários enfeites remetendo
ao período e numerosos livros sobre o assunto foram encontrados. As vítimas, inclusive, haviam comentado em mais de
uma ocasião com familiares e amigos que sentiam que haviam vivido no período,
tamanha a sua paixão pelo assunto.
Dei
um leve sorriso ao fazer a pequena caminhada de volta ao escritório, mesmo com
meu corpo arrepiando em advertência. Isso explicava tudo.
Ao
sentar novamente na minha mesa a tarde, olhei demoradamente para cada um dos
meus bonequinhos de luxo de Henrique VIII e suas esposas que estavam na minha
mesa a mais tempo do que eu conseguia me lembrar.
Liguei
o computador e tentei me concentrar no trabalho, mas era difícil, o tempo
esquentara e isso levava toda a minha tranquilidade embora. Sem falar que meus
colegas continuavam vindo na minha sala sem parar.
Por
volta das três da tarde, desisti. Joguei paciência pela próxima hora, até o
Thiago, meu gerente, abrir a porta sem aviso:
— Ana…
Me
levantei de forma desanimada.
— Sim, já
sei.
Ele
me devolveu um olhar preocupado.
— Eu pedi
pro Sérgio, da segurança, te acompanhar até em casa.
Suspirei.
— Não
tenho escolha, tenho?
Ele
me abraçou.
— Nenhuma
escolha. Vá para casa. Trabalhe de lá enquanto isso durar.
Recolhi
a bolsa, casaco, minha touquinha tão amada. Antes de sair, olhei ao redor, com
uma sensação de aperto no peito. Eu voltaria pra ver esse lugar? O Thiago me
acompanhou até a sala do Sérgio e dali fomos embora juntos, com todos me
olhando com mais pena do que preocupação.
Ao
chegar em casa, meu diploma de conclusão do curso de História, que havia sido
orgulhosamente pendurado na sala em uma moldura de prata vitoriana, parecia me
encarar. Sentei no sofá, mas não consegui me concentrar nas notícias, só me
deixavam ainda mais ansiosa.
Fugi
para o banheiro, me permitindo um banho longo e demorado. Ao sair, peguei o
celular, sem conseguir prestar atenção em muita coisa.
“Pai.” Digitei sem pensar muito. “Vai
vir?”
Encarei
o aplicativo de mensagens com o coração acelerado.
“Estou
a caminho.”
Me
sentei no balcão da janela que dava para a rua, apreciando o final de tarde,
decidida a esperar por ele. Enquanto isso, os rostos.
Os
rostos das quatro mulheres assassinadas não saíam da minha mente, rindo,
gargalhando. Havíamos sido colegas de faculdade, eu conhecia a todas muito bem.
Cada uma tinha uma Rainha Tudor, esposa de Henrique VIII, como favorita e
perdíamos horas discutindo, defendendo-as. Qual foi a última vez que havíamos
nos reunido?
O
barulho do motor do velho carro do meu pai já seu fazia ouvir, ao longe, mas
não me distraiu das minhas lembranças.
Ah
sim. Estivemos juntas naquela sala da vidente, especialista em vidas passadas.
Maria
ficou fascinada em rever suas memórias da vida anterior, se reconhecendo como
Jane Seymor. Cristina chorou convulsivamente ao se reconhecer como Catarina de
Aragão. Angela ficou orgulhosa de se ver como Ana de Cleves, e Patrícia ficou
cabisbaixa com suas memórias de Catarina Howard. Já eu… A hipnose não me fez
bem. Minha cabeça doía, e nunca mais dormi direito, assombrada pelas vivências
de Ana Bolena que encarnei. O desespero dela em seus últimos dias, presa na
Torre, eu nunca ia superar.
Nunca.
O
barulho das chaves girando me trouxe parcialmente de volta. Meu pai deve ter
dito algo, mas meu cérebro não processou, apenas sorri mecanicamente.
Foram
semanas vivendo no Inferno. Lembrando de como eu só queria uma vida simples com
o homem que amava e tudo havia me sido tirado, até não restar nada além do
desespero pelo nome manchado e por deixar minha filhinha pequena.
Acabei
voltando na vidente, para obter maiores detalhes. Claro, eu fui dominada pela
vingança e ambição, mas havia sido atirada aquela situação por alguém que
através de mim queria poder. Queria lembrar de tudo, de como perdi meu amor, de
como seduzi um Rei que não amava, de como depois, louca, me apaixonei por ele e
isso precipitou toda a minha ruína.
O
amor me enfraqueceu naquela vida, isso não aconteceria de novo.
Foi
por isso que encomendei aquela adaga tão bela. Por isso tive que matá-las, uma
a uma: a mulher que havia sido minha predecessora, a mulher por quem fui
trocada e deu a ele o maldito filho homem, a minha prima que ousou jogar o
mesmo jogo que eu, e a égua alemã que conseguiu sair viva do casamento.
Não
importava que eram minhas amigas nessa vida, que havíamos crescido, rido e
chorado juntas. O amor não me pararia de novo. E não parou: eu as observei
morrer afogadas no próprio sangue, como eu.
Meu
pai continuava falando ao fundo, mas eu não podia me deixar distrair. O ódio
percorria meu corpo em ondas, o gosto de bile estava na minha boca. Ainda
restava alguém para matar, alguém que havia me colocado em meio ao jogo, alguém
que, depois de tudo, ainda ficou vivo para desfrutar do poder adquirido e teve
a coragem de nascer como meu pai novamente, nessa vida.
Andei
sem pensar muito até a cozinha, de onde voltei com a adaga. Não parei de
apunhalar até que tudo ficasse vermelho.
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