Cabeça de Boi - Carlos H. F. Gomes
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
Cabeça de Boi
Carlos H. F. Gomes
Lembro-me,
como se fosse hoje, da minha ansiedade em chegar logo à chácara para poder ir
brincar na terra com meus carrinhos. Saímos cedo de casa, fomos de táxi até a
Estação da Luz, onde ficava a rodoviária naquela época, e pegamos o ônibus bege
e bordô da Viação Santa Rita, até Mairinque, depois outro que saia do ponto da
Prefeitura, na área urbana, e nos deixava em frente à venda do Seu Nelson, na
área rural. Mas naquele dia o velho ônibus empoeirado, por dentro e por fora,
chacoalhando mais do que das outras vezes, com a pretensão de nos levar em
segurança pela estrada de terra, quebrou assim que parou no ponto do Grupo
Escolar, muito longe do nosso destino.
Enquanto
esperávamos, abrigados na sombra dos eucaliptos, que algum conhecido do meu pai
passasse e nos oferecesse carona, eu brincava na terra com meu carrinho verde.
Lembro-me de uma Kombi azul ter parado e oferecido carona para as pessoas, mas
ninguém aceitou; só meu pai e, muito ocupado em guardar meu carrinho novo no
bolso, entrei sem prestar atenção, acomodando-me entre minha mãe e ele no banco
empoeirado.
Amontoado no
chão da Kombi havia um boi, já sem o couro, cortado em peças, com um cheiro
enjoativo de carne crua entrando pelo nariz e aparecendo como sabor indesejado
no céu da boca, impregnando-se até na poeira da estrada. E a cabeça do boi em
carne “viva” colocada por cima de tudo, insistia em olhar para mim, apontando
os chifres de forma ameaçadora, conforme a Kombi velha rangia, gemia, espocava
e chacoalhava pela estrada de terra. Durante um percurso de quase meia hora,
aqueles olhos negros e pequenos não se desviaram de mim, nem quando as centenas
de moscas pousavam neles.
É claro que
quando desci daquela lata velha, botei tudo para fora quase na porta do
estabelecimento do seu Nelson. Nem a tubaína geladinha e o sorriso com dente de
ouro do alegre dono da venda me animaram; tudo girava dentro da minha cabeça e
da barriga também. Passei o resto do dia com aquela sensação de que viraria do
avesso a qualquer momento e aquele cheiro de carne crua insistia em ficar
grudado dentro do meu nariz.
A lembrança
daquela cabeça sem couro lá na Kombi levou-me à outra, quando eu assistia ao
Sítio do Pica-Pau Amarelo, lá na vó Luiza, e havia um homem com cabeça de boi
naquele capítulo; não me lembro o que ele fazia de errado, mas sei que era mau
e que dali em diante aquele personagem passou a aparecer em meus sonhos
agitados.
Dormi cedo naquela
noite, na parte de baixo do beliche junto com minha mãe, e peguei num sono
pesado que nem me incomodei com os prováveis roncos do meu pai na parte de
cima, mas sonhei com aquele homem do Sítio do Pica-Pau Amarelo e a sua cabeça
era a do boi em carne “viva” que mais cedo não parava de me olhar.
Quando
descemos da Kombi, não vimos a venda do Seu Nelson; havia ali um lugar enorme,
que parecia a garagem do prédio onde o Seu Luiz, da Dona Rosa, era o zelador,
mas não tinha carro nenhum estacionado ali, apenas pilares e mais pilares e um
eco longínquo de correntes caindo no chão e gritos que pareciam de dor. Apertei
meu carrinho verde entre as mãos para que não o perdesse e olhei para o meu
pai, só que ele não estava mais lá. Nem minha mãe, nem a Kombi, nem o Seu
Nelson e seu dente de ouro.
Sei que
demorei um bom tempo para entender, ou melhor, para aceitar que estava sozinho.
Dei um passo à frente e olhei para os lados: um corredor de pilares para a
direita, outro para a esquerda e mais um adiante, e foi aquele último que
escolhi, talvez em um impulso oculto pelo desejo de seguir em frente. Devo ter
andado pelo menos uns dez minutos em linha reta, chamando pelo meu pai, até me
deparar com pilares dispostos de forma irregular em meio a uma névoa fria que
subia rápido pelas minhas pernas e não me deixava ver muito longe. Pensei no
que fazer, olhei para o carrinho verde em minhas mãos, depois para trás e tomei
a decisão de voltar pelo corredor pelo qual eu tinha chegado até ali, mas ao
virar-me, vi que os pilares ali também estavam bagunçados.
Os barulhos de
correntes e de gritos pareciam mais altos, mais nítidos. Parecia com o grito da
minha mãe daquela vez em que uma barata voadora entrou na sua blusa e não pude
deixar de sorrir naquele momento. Um sorriso que não durou muito, pois ouvi
outro grito de uma voz masculina, como a do meu pai gritando o meu nome no dia
em que aprendi a andar de bicicleta e quase fui atropelado.
Apertei com
mais força o carrinho entre as mãos, os pilares continuavam dispostos de forma bagunçada
e os gritos vinham da minha esquerda. Meus pés começaram a andar naquela
direção, sem o meu consentimento, e aquela sensação incômoda de não poder
controlar meus próprios passos acompanha-me até hoje.
Entre os
pilares vi um vulto se mexendo e não parecia ser gente porque era muito grande.
Talvez fosse um cavalo ou... um boi! Não! Em meio a névoa, pude ver que era
apenas um homem alto e forte. Mas, e aqueles gritos horrorosos? Seriam causados
por ele? Meus pés pararam de andar a poucos pilares de onde estava aquela
pessoa.
Não, não era
uma pessoa! Pessoas tem cabeça de gente! Gritei um grito esganiçado que não foi
o suficiente para chamar a atenção daquele... daquela... não sei como definir a
criatura. Mas quando aquilo pegou minha mãe com as duas mãos gigantescas e a
esticou até arrebentá-la em duas e ela parar de berrar, vi meu pai acorrentado
pelo pescoço a um pilar, como se fosse um cachorro, fazendo uma força
sobre-humana, porém sem efeito, para se livrar e correr em socorro dela. Mas já
era tarde; a criatura levou a cabeça da minha mãe à boca babenta e mordeu um
naco.
Algo que nunca
tive, a não ser em sonho, jorrou de dentro de mim e joguei com toda a força do
meu pequeno corpo o carrinho verde naquele monstro que comia a cabeça da minha
mãe, ruminando-a com uma fleuma bovina que dava nojo, os cabelos dela, como
capim negro pendurando em seus beiços. Meu pai se debatia como um cão raivoso,
jogando toda a força de seus músculos e peso do corpo contra a resistência da
corrente e só fazia se machucar ainda mais, por dentro e por fora.
Aquele homem
enorme, com cabeça de boi em carne “viva”, olhou para mim e, antes de morder
mais um naco da cabeça da metade da minha mãe, mugiu:
— Eu não sou
filho do Boi Branco e você não é Perseu, pirralho! — não fazia ideia do que
significava aquilo que o desgraçado mugiu, mas quando ele arrancou mais um naco
da cabeça da minha mãe e começou a ruminar seu cérebro e o capim negro dos seus
cabelos pendurados para fora da boca mole do monstro, fui jogado para fora do
sonho.
Acordei com um
grito agudo dentro do escuro absoluto, pontilhado pelo cricrilar de uma miríade
de grilos, em nossa chácara, ao lado da minha mãe. Ela estava inteira e meu pai
apenas se virou para o outro lado na parte de cima do beliche e continuou a roncar
seu sono e aquela chácara passou a abrigar mais uma história sinistra de tantas
da minha infância atormentada.
Oh loko!
ResponderExcluirÉ bem auto biográfico esse causo aí e ainda me atormenta!
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