O Guardião do Rio Ness - Carlos H. F. Gomes
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
O Guardião do Rio Ness
Carlos H. F. Gomes
— Que criatura
abissal pode ter causado tamanho ferimento neste homem! Você aí, entre na água
agora. Esse monstro não pode fugir ao castigo de Deus. Vá, homem, entre na
água. Nada tema diante do mal, pois Ele de tudo o protegerá.
Aquela visão
jamais abandonaria os pensamentos da pobre jovem: um estranho de presença imponente,
voz retumbante e vontade vigorosa acabara de ordenar a um de seus homens que
entrasse no rio, mesmo sabendo que lá ainda estava rondando o Guardião do
portal que levava à morada dos Deuses. Seu irmão fora punido mortalmente pela
criatura dotada de tamanho e força tal qual somente poderia ser um enviado dos
Deuses para proteger as águas sagradas de onde o ingênuo rapaz desejava retirar
um peixe e coloca-lo na mesa da família como prova ao seu pai de que ele também
poderia ser um provedor. Fora severamente punido pelo Guardião de força
assustadora que levou consigo um pedaço grande de carne, deixando o sangue e a
vida de seu irmão esvaindo-se em direção às águas caudalosas e escuras.
— Apareça,
demônio, venha enfrentar este servo do Deus Todo Poderoso! Ele expulsará dessas
terras pagãs todo e qualquer demônio como você. Eu ordeno que apareça!
Aquele homem
cuja vontade não era questionada apontava para a correnteza escura um artefato de
madeira do qual ela desconhecia. Era como uma vara do cumprimento da mão aberta
de seu pai e outra menor que a cruzava um pouco além de sua metade. Enquanto
isso o outro homem no rio estava com a água pela cintura, tremendo de frio e
medo, quase sumido pela bruma, batendo os dentes como se invocasse uma prece
desesperada que a jovem compreendia.
Seu irmão
gemia com voz débil e borbulhante, enquanto o sangue brotava como uma fonte de
sua barriga aberta e escorria por entre os pedregulhos da margem, sendo levado
aos poucos pelas águas do Rio Ness. Ele apertava na mão direita um pequeno
esturjão, já esmagado e imprestável; indesejado. Ela havia alertado o irmão de
que não estava certo o que pretendia fazer, tentando explicar que era como
roubar dos Deuses, mas ele nasceu teimoso e morreria assim.
Contara onze
homens, mais o que entrou no rio e aquela figura destemida, com olhar de louco,
barba castanha eriçada e suja, desafiando o Guardião dos Deuses do Rio Ness,
sem sequer molhar as sandálias. Sua voz trovejava por entre os troncos das
árvores, espantando delas os pássaros, que voavam para longe pelo céu cinza que
cobria a aldeia de Pictos. Apontando seu instrumento de madeira que devia
guardar algum poder que pudesse salvar o homem na água de mesma cor do céu
escocês, ele bradava:
— Apareça,
criatura abissal! Venha enfrentar o poder de Deus que se manifesta através
deste servo que atende pela alcunha de Columba!
Ocupado em
gritar para as águas enquanto empunhava seu pretenso poderoso instrumento,
Columba não percebeu que a cerca de três braçadas de distância do homem quase
todo submerso, o monstro surgia de debaixo da água, saltando por entre a
neblina, como uma fera sobre ele. Uma criatura inimaginável, sem braços ou
pernas, sequer patas, apenas um corpo gigantesco, roliço, rígido, cor de terra,
encimado por uma cabeça que se afunilava até uma bocarra fosse aberta um
tamanho descomunal, circundada por dentes pontiagudos e serrilhados,
fechando-se no pescoço do desprotegido companheiro de viagem de Columba. Por um
rápido instante a bruma branca fora macula por raios de seiva vermelha que a
agitavam, afundando nas profundezas do rio de águas escuras, levando consigo o
pobre homem e o monstro.
— Eu ordeno
demônio das águas escuras desta terra pagã: retorne às profundezas de
sofrimento do inferno de onde veio e jamais torne a aparecer neste mundo que
agora passa a ser abençoado por Deus! Não ouse desafiar Sua fúria novamente,
besta abissal!
A jovem
perplexa olhava para o homem de nome estranho, tentando imaginar quais seriam
as punições que os Deuses desfeririam sobre a já paupérrima aldeia de Pictos
pela grave ofensa cometida por aquele forasteiro capaz de ordenar que seus
homens morressem daquela forma. Seu irmão já representava a maior punição que ela
poderia suportar e não estava disposta a pagar pelas ofensas de um louco que no
seu entender desafiava os Deuses empunhando um artefato que ela julgou ser
poderoso, mas mostrou-se ser apenas de madeira.
Ela pousou no
chão com delicadeza a cabeça do seu irmão morto, levantou-se e andou em direção
ao homem que olhava juntamente com os outros para as águas escuras do Rio Ness.
Parou atrás dele sem ser notava, reuniu toda a força de seu mirrado espírito,
soltou um urro desproporcional e empurrou o pesado e resoluto homem para dentro
do rio com tamanha vigorosa força, lançando-o a umas três braçadas de distância
da margem. Incrédulo e assustado, ele debatia-se sem conseguir firmar os pés no
fundo do rio, esparramando névoa e água.
Ao longe a
criatura impossível deslizava seu dorso escuro e abaulado pela superfície branca
da bruma, deixando para trás o enviado de um Deus estranho que ali chegou para
abençoar uma terra considerada pagã.
Afundando para
as profundezas de sua morada, o Guardião deixou para trás o que não era mais de
sua responsabilidade e rumou para o sul da Escócia.
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