Monstro de Cinco Cabeças - Carlos H. F. Gomes
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Ed, Natanael e Carlos, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Carlos ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
Monstro de Cinco Cabeças
Carlos H. F. Gomes
Fazia algum tempo que não íamos à chácara de Mairinque. A
verdade não declarada, mas sentida, era que após a triste festa junina quando
vimos a Cida, a mula do Tonho, sumindo para o meio do mato com a cabeça em
chamas, ficamos com um medo velado de voltarmos lá, principalmente na venda do
seu Nelson. Mas também não conseguíamos ficar muito tempo longe de onde
podíamos ser quem quiséssemos sem ter ninguém que nos conheça como a palma da
mão vigiando nossa vida atrás de desagradáveis mexericos. Ah, como eu adorava
aquele lugar que, embora sinistro algumas vezes, era mágico a maior parte do
tempo.
Era um feriado ensolarado qualquer,
a passarinhada feliz da vida, os insetos fazendo o ar zunir e as cobras tomando
sol guardando uma distância segura de bichos peçonhentos como nós. Enquanto
minha mãe proseava com a Dona Bete, esposa do caseiro do Seu Jairo, da chácara
lá do fim da rua, meu pai me chamou para ir com ele na venda do Seu Nelson.
Quase chegando, ladeando o lago pela rua de terra, viramos a esquina e fiquei
intrigado porque a água estava parada como um espelho e não havia ninguém
pescando, nem o Seu Jão com sua canoa lá no meio fingindo que pescava, mas na
verdade também fugindo do mundo; nós fugíamos para o meio do mato e ele para o
meio do lago.
Ao nos ver chegando, o Seu Nelson
abriu uma Itubaína geladinha para mim e colocou sobre o balcão dois maços de
Continental e um bom pedaço de fumo de corda, que mais parecia um cocozão.
Sorridente como de costume, ele nos recebeu perguntando se havia acontecido
algo para não aparecermos mais, querendo saber se ficamos ricos. Enquanto ria,
o reflexo do seu dente de ouro brilhava nas garrafas de cachaça com cobras
dentro. Perguntei do Tonho e ele disse que saiu cedo, pensei que tivesse ido
para o Setúbal, mas não; desde o acidente com a Cida ele só andava lá pelas
bandas do desague do lago.
A rua “principal” que vinha lá
da cidade e seguia lá para dentro do bairro do Setúbal, um pouco antes de
chegar á venda passava pelo lago. Ali, atravessando a rua havia uma ribanceira
de onde subia o barulho de água caindo como se fosse uma pequena cascata, mas
não dava para ver. Na verdade era um brejo que todo mundo tinha medo e dali
para traz eu não fazia ideia se haviam outras chácaras, apenas dava para ver os
eucaliptos lá embaixo, depois do brejo, e eles pareciam bem menores vistos lá
da rua. E foi para aqueles lados lá detrás que a Cida havia corrido com a
cabeça pegando fogo e devia ser para lá também que o Tonho tinha ido, ainda com
a esperança infantil de encontrar sua mula querida e trazê-la de volta para
casa.
Naquele momento lembrei-me do
lago como que congelado no tempo. Bebi o resto da Itubaína, coloquei o copo
sobre o balcão mais alto que eu e, enquanto os dois conversavam e riam, saí e
fui até a rua. Olhei para a esquerda e vi o ônibus que vinha de Mairinque
deixando dois passageiros no ponto do lago e seguir barulhento e empoeirado para
o Setúbal. Algo atraía a minha atenção para o lago e fui até lá pensando na
superfície da água que não se movia e no Seu Jão que não estava na sua canoa.
Tive a
impressão de atravessar algo mais denso que ar, porém menos que a água, e senti
frio. Era como se tivesse entrado em outra dimensão ou, pelo menos, em outra
estação do ano, porque realmente fazia muito frio, havia uma névoa no chão que
também cobria o lago e nuvens cinza escuro voando rápido pelo céu.
Senti medo e gritei pelo meu pai,
mas ele não veio me socorrer. Talvez não tivesse ouvido, então gritei mais alto
e mesmo assim ele não apareceu. O frio me fez tremer até bater os dentes e
quando fiz meia volta para sair dali e abrigar-me na venda do Seu Nelson, ouvi
a água do lago como se estivesse borbulhando e a nevoa no meio, onde o Seu Jão
costumava ficar, agitou-se assustadoramente.
Andei
para mais perto da margem e tentei enxergar algo dentro da névoa. O barulho foi
aumentando e algo que parecia grande se mexeu com espalhafato. Devo ter
gritado, mas não saí do lugar. A água continuava agitada e vi mais duas coisas
grandes se mexendo de um lado para o outro, como se fossem cobras gigantes
saindo do fundo do lago.
Um rugido impossível de tão alto
fez o chão tremer e uma cobra gigantesca elevou sua cabeçorra a mais de dez
metros de altura. Rugidos graves e outros esganiçados, igualmente estrondosos,
irromperam de dentro da nevoa e mais duas cobras gigantes se ergueram, depois
mais uma e mais outra e dançavam horríveis e quase tão cinza quanto às nuvens
que corriam rápido pelo céu errado que deveria ser azul.
Aquelas cinco impossíveis
cobras gigantes se mordiam e se enrolavam como se fossem filhotes brincando até
que uma parou, olhou na minha direção, escancarou a boca em um urro esganiçado
e, formando um arco imenso, investiu na minha direção. Instintivamente
joguei-me no chão e vi aquele colosso abocanhar um homem que, saído não sei de
onde, passava por ali à cavalo. Como que farejando alimento, outra cobra
abocanhou o cavalo que, caído, tentava se levantar, relinchando seu desespero.
Aqueles monstros mastigavam suas presas, enquanto outra cobra tentava roubar o
cavalo daquela que o pegou.
Esse alvoroço chamou a atenção dos
outros dois monstros que tentavam pegar da boca das outras o homem e o cavalo,
até que pararam e ergueram a cabeça como que farejando o ar, viraram-se para o
outro lado do lago e juntas deram o bote em algo que eu não pude ver o que era
até que se esticassem a dez metros de altura com as presas na boca. Gritei em
desespero pelo que vi Seu Jão e sua canoa e aquela barulheira infernal com água
espirrando para o alto e as cobras gigantes que se emaranhavam como se fossem
as cabeças de algum monstro que vive no fundo do rio.
Senti que algo me segurava
forte e tentei fugir, dando socos e pontapés entre gritos desesperados e choro.
Ouvi uma voz familiar gritando o meu nome e aos poucos identifiquei meu pai
entre a névoa, tentando me segurar enquanto eu me debatia. A nevoa foi se
dissipando e vi o Tonho correndo em nossa direção para saber o que acontecia.
Só consegui falar que que as cobras comeram o Seu Jão e sua canoa, depois não
me lembro de mais nada.
No estado
em que fiquei, minha mãe insistiu que voltássemos para São Paulo. Só voltamos
na chácara no ano seguinte e eu passei a ter um medo desconfortável do lago
que, mesmo assim, parecia mais bonito que antes. O consenso geral era que eu
tive uma alucinação, uma senhora alucinação e não me restava alternativa a não
ser aceitar. Meu amigo Tonho parou de procurar pela Cida; para ele também não
havia outra alternativa. Mas ficamos sabendo de uma notícia triste: desde
aquele dia da minha alucinação das cinco cobras gigantes, ninguém mais viu o
Seu Jão. Acreditavam que ele se afogou no lago; também não tinham outra
alternativa.
Existem muitas histórias que parecem ser alucinações, que até podem ser,mas quando existe algo que some no mesmo espaço ee tempo, porque não acreditar.Eu vivi uma vida tendo a meu lado alguém que tinha um dom,e vi muita coisa que nunca esperei ver e antes quero crer do que ver.Gostei muito do conto,parabéns
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