O Morro dos Pés Cansados: João e Maria - Natasja Haia


Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Natasja ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



O Morro dos Pés Cansados: João e Maria

Natasja Haia


"— Ainda assim, crianças — disse ela — vocês me dão esperança. Acho que sua vinda é sinal de boa sorte. Talvez tenhamos carne de novo."  GAIMAN, Neil

   No alto do morro havia uma rua desnivelada altamente caprichada, era feita de ladrilhos coloridos e em frente de cada casa havia dois duendes, segundo os moradores um pra levar o tiro, outro para guardar a graça, do dia, da vida, da cantiga de rodas, da risada de João e Maria. A família Torres era a mais conhecida, composta pelos pais, uma mulher irlandesa de aparência sofrida, mas com alma de artista e sangue de uma doce magia e um homem carioca, negro, de uma altura expressiva, professor de capoeira e muito popular no morro. As crianças eram João e Maria, com olhos verdes saltitantes e curiosos, pele negra e uma alma docemente tagarela.
   Apesar da mágica, da arte e da vontade de mudança da família Torres, havia uma realidade cruel que precisava ser atravessada e revisitada todos os dias, um canibalismo metafórico, representado pelo tráfico, um governo ineficiente e uma herança herdada da colonização de miséria e exploração. Na rua mais alta do morro dos pés cansados tudo era realmente lindo e calmo, mas o meio dessa favela foi tomada por uma outra favela, apelidada de “A morte mora nos passos”, lá havia tiroteios diários e ranger de dentes.
   Breve nota sobre a realidade: A paz está sempre ameaçada.
  Quando o tormento chega não demora muito para que até os seres mais resguardados precisem enfrentar a fúria do caos. Foi assim para os moradores da rua dos duendes. Em um fim de tarde ensolarado, um pôr do sol avermelhado de um dia aparentemente calmo, o fogo cruzado, o que poderia ser fogos de artifícios alimentando a risada das crianças no retorno da escola, eram balas encharcando as esquinas de sangue e enterrando sonhos. No alvorecer: 55 mortes, 10 delas crianças, entre os adultos o Senhor e a Senhora Torres. Contabilizando 2 órfãos, João e Maria.
   Já não havia mais duendes, os ladrilhos agora eram vermelho sangue, e João e Maria foram morar com uma velha tia rabugenta na parte mais perigosa da comunidade. Não havia emprego, nem dinheiro, e o alimento estava cada vez mais escasso. Não tardou para que as crianças conhecessem os donos da poção mágica, e se tornassem os Elfos do tráfico. Alimentados pela violência, as alucinações e o esquecimento, eles se tornavam a cada dia mais magros, sustentando assim os privilégios de uma terra distante e inalcançável. Ouviam as histórias sobre o Alvorada, os ônibus que voam e levam até Dubai, as torres de vidros e os cafés banhados a ouro. E em uma roda desfocada pela fumaça de charutos mágicos, mais balas.
   Assim como para milhares de crianças enterradas ainda vivas por um sistema falido, João e Maria também não tiveram um final feliz.
   Sinto Muito!

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