O Outro Lado da Neve - Naiane Nara
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Naiane Nara ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
O Outro Lado da Neve
Naiane Nara
Acordo mais uma vez, sem vontade. Ao longe, ainda ouço todos os malditos
sons: a água caindo de forma incessante, os sussurros, os passos. Não sinto
nada como de costume, apenas essa sensação gelada grudada à minha pele que
sempre me acompanhou. Não me lembro de ter sentido nada diferente na vida,
então, não me surpreende.
Estou nesse calabouço há mais de 357 dias, a nova forma de castigo dela.
Quer mostrar a todos que o passar do tempo me afetará, que quebrará meu
espírito. Não posso deixar escapar uma sombra de riso ao pensar nisso. Mesmo lá
fora, minha vida era monótona e solitária, graças à maldita realeza, graças à
morte deles que me geraram.
Não tive irmãos. Outras crianças, mesmo as da nobreza, sempre foram
proibidas de me fazer companhia. Quanto à minha mãe, que morrera quando eu
ainda era uma infante, me lembro apenas vagamente da voz grave de contralto me
ninando e um esvoaçante cabelo dourado. Mais nada.
Meu pai – de quem herdei os traços, a pele muito branca, cabelos e olhos
pretos como a noite – esse esteve comigo por algum tempo. Me chamava de sua
pérola, estudava comigo e me mimava. Foram anos bons aqueles, em que ríamos
juntos, ele corrigia minhas lições de piano e saíamos para caminhar na floresta
no meio da noite, os animais se aproximando ou se afastando de nós ao meu
chamado, de acordo com o tom de voz da minha canção.
Raras foram as vezes em que fizemos algo no período diurno; nunca
gostamos muito do dia. Não podíamos nos encantar com os raios solares, tão
parecidos com os cabelos dela. Era impossível o mundo ser tão belo, os pássaros
continuarem a cantar e tudo continuar de forma tão maravilhosa depois que ela
se foi. Era inconcebível, inimaginável.
A noite, porém, o mundo parecia congelado como que em algum encantamento;
o contraste entre o escuro do céu e a beleza das estrelas sempre nos aprisionou
de forma intensa demais para ignorar. A luz da lua embebia nossa alma de
fluidez, amor e sensibilidade: era o mais próximo da felicidade que poderíamos
chegar. Sendo livres ao cair da noite, quando meu pai se libertava dos afazeres
que o entediante trono proporcionava, gostávamos de sonhar que o amanhecer
talvez a trouxesse de volta.
Então, e só então, voltaríamos a amar a luz do dia, nunca antes.
Porém esse período de tranquilidade e paz também acabou. Os nobres o
pressionaram a se casar novamente. Meu pai resistiu o quanto pôde, mas com o
passar do tempo, as rebeliões e os embargos o fizeram ceder. Queriam herdeiros,
príncipes fortes o bastante para governar. Uma mulher não bastava para eles.
O que a princípio era uma obrigação dinástica se converteu na minha
perdição total e irremediável: a noiva de meu pai, única herdeira do rico reino
vizinho, era alta e estonteante. Certamente a criatura mais bela que já se viu,
elegante nos mínimos gestos. Mas o que odiei nela foram os cabelos, louros como
os da minha mãe. Geniosa e intransigente, porém encantadora, manteve meu pai
cativo de sua beleza nos anos que lhe restaram.
Ele se esqueceu de mim, de minha mãe, de nosso elo. Mudou tudo no
palácio: abriu o salão para festas grandiosas todas as semanas por que era o
que a rainha desejava. Esqueceu a beleza da noite pelas atividades realizadas
durante o dia, caçadas, almoços, viagens. Me forçou a participar disso tudo, por
que a rainha não via com bons olhos minha pele muito branca, minha boca
vermelha e os cabelos como uma cortina de seda negra. Dizia que seria mais
saudável para mim que eu adquirisse o seu tom bronzeado que a tornava tão linda
e contrastava com seus olhos de esmeralda e cabelo dourado.
Eu me tornei ainda mais fechada. Ver a alegria dos dois como casal me
consumia. Socializar era terrível, e ainda o é. Sou naturalmente tímida e
depois de uma vida à sós com meu pai eu não sabia como entreter convidados ou receber
flertes. A rainha é claro, não gostou nada. Mandou realizar festejos juvenis
para atrair adolescentes à minha companhia, o que foi uma tortura maior do que
a que ela me impõe agora.
Porém uma coisa magoou a minha madrasta mais do que meu afastamento: ela
não conseguia cumprir a principal função de uma rainha, que é gerar filhos para
a dinastia. E o tempo passava, ela estava envelhecendo. Nesse ínterim, as
pessoas começavam a reparar em mim. Não entendo, sempre fui a mesma, por que me
olham só agora?
Querem saber o que faço, mostram-se interessados em meus passatempos de
leitura e admiração noturna que antes eram considerados frívolos e dignos de
uma criança. A moda se tornou mais austera, advinda de cores clássicas e
escuras, como as que eu usava.
Até meu pai voltou a me dar atenção, orgulhoso de como a sua pérola
crescera. E isso foi o estopim.
Tudo que fiquei sabendo depois foi que estourou uma rebelião; seguindo
os costumes de nosso reino, onde o Rei é também general, meu pai vestiu sua
armadura e reuniu um exército para combatê-los.
Ele nunca mais voltou, então a minha vida se tornou um inferno.
Alguma coisa aconteceu nessa batalha, pois os nobres que antes
repudiavam a ideia de uma mulher no trono agora acolhiam a Rainha como
salvadora e patriota. Unindo os dois reinos como governante em seu próprio
direito, ela se tornou minha regente. Era respeitada e consultada por todos,
porém a raiva de mim ainda ardia sob a superfície.
Ela me aprisionou sem cerimônias, sem direito a ver ninguém ou sair.
Senti muita falta da liberdade de caminhar pela floresta à noite e admirar a
lua. Sobre ver outras pessoas, sinceramente não fazia diferença.
Porém vendo que me sentia confortável com a solidão, como a me castigar,
ela me fez sair de tempos em tempos, para que vissem que ainda estou viva. Cada
vez que voltava à torre que se tornou minha prisão, algo de que gosto muito era
retirado. Meus livros, meu piano. Minha cama, roupas, objetos.
Hoje vivo em uma cela nua há mais tempo do que esperava. Mas está
chegando a data em que vai precisar me deixar sair, e estou ansiosa por isso.
Minha pele já dormente e minha boca vermelha anseiam de antecipação: vou
investigar a morte de meu pai, e se ela tiver algo a ver com isso...
Finalmente a noite chega, e sou libertada. Posso desfrutar de um banho e
boas roupas, mas sou obrigada a comparecer ao baile. A rainha, mais velha do
que me lembrava, franziu o cenho com minha chegada. Mas os nobres e até mesmo
os criados me receberam muito bem, como uma verdadeira princesa amada pelos seus.
Entre uma dança e outra, em meio à multidão enlouquecedora, capto os
sussurros de que precisava:
– Branca está mais linda a cada ano que passa, não é mesmo?
A outra pessoa respondeu;
– Certamente. Ela tem o mesmo olhar hipnótico do pai. Você acha que ela...?
– Que ela é um deles, como ele? Não, não. Se fosse um deles, a Rainha já
a teria destruído, como fez com o Rei.
Depois disso, a conversa ficou ininteligível para mim. Minha visão
estava turva de ódio. Então foi isso. A rebelião foi desencadeada pela maldita
Rainha, que acabou com a minha vida de mais de uma maneira.
Eu sempre me retirava cedo desses bailes, para desfrutar dos confortos
do quarto antes de ser enviada de volta à prisão, mas não hoje. Hoje esperarei.
Depois de toda a comida e toda música, os elogios e danças, o baile
terminou. Fingi que voltaria à minha torre, mas me esgueirei pelas sombras do
castelo, ajudada em parte pelo meu vestido negro e tamanho diminuto. Cheguei
aos aposentos reais a tempo de vê-la tirando os brincos.
Ela se virou e ficou pálida ao me ver encostada à janela. Olhei
diretamente em seus olhos tão elogiados outrora e reconheci o pavor.
– Branca, o que está fazendo aqui?
Ao menor movimento dela na intenção de chamar os guardas me aproximei,
mais rapidamente do que eu mesma esperava. Mesmo que ela sendo muito alta, meu
olhar a manteve cativa.
– Você sabe por que vim, usurpadora. Ou devo dizer assassina?
Seus olhos se desanuviaram e ela recuperou a segurança, embora ainda
mantivesse o olhar preso no meu.
– Ah, então é isso.
Senti algo rugir no meu peito de ódio por tamanha indiferença. Ela
sorriu muito levemente:
– Eu tive que fazer isso. Seu pai era um maldito sugador de sangue. Como
acha que sua mãe morreu? Ou acreditou em algum momento naquela baboseira
romântica sobre a noite?
Parei de respirar, passando do ódio ao assombro, mas ela continuou:
– Vocês não podem andar de dia, o Sol lhes fere. Você é uma meio
sanguessuga, e só por isso consegue andar um pouco de dia. Quando descobri a
verdade, me juntei aos nobres e preparei a emboscada. – Ela suspirou. – Era a
vontade de Deus. Você só foi poupada por ser metade humana. Sua beleza lendária
é amaldiçoada, é isso.
Fiquei parada por um momento, sem acreditar. Ela se aproveitou de minha
distração e livre de meu olhar, balançou o sino, chamando os guardas.
Ah, eu não deixarei ela vencer, não dessa vez. Seu eu tenho poder, posso
usá-lo e ser livre.
Andei rapidamente até ela e lhe dei um tapa tão forte que cortou seus
lábios de encontro aos dentes.
Depois disso, tudo foi um borrão. Os guardas chegaram e eu estava
sentada na cama real, com a Rainha ensanguentada agonizando aos meus pés. Os
guardas estavam assustados, mas pude ver que ficaram do meu lado quando notaram
minhas bochechas coradas.
Pude ouvir os pensamentos: " Ela é humana enfim. Que fizemos
ajudando a aprisioná-la por tanto tempo?"
Encarei-os mais plena do que jamais me sentira antes. Alguns nobres em
aposentos próximos se juntaram aos guardas, os pensamentos em consonância.
– Não temam. Ela era uma bruxa, e enganou todos vocês. Fiquem comigo, e
os perdoarei.
Minhas bochechas os fazem crer que sou completamente humana, estão
rosadas e me sinto quente. Posso notar que seus olhares vão do espanto à
admiração. Eles se ajoelham diante de mim, repetindo em uníssono:
– Vida longa à mais bela de todas, Rainha Branca de Neve.
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