Abissal - Natasja Haia
Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Natasja ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.
Abissal
Natasja Haia
É
mais um dia frio e nublado, a janela está completamente embaçada, resultado do
orvalho. Os pássaros fazem um coro que se assemelha a um gemido. Há muito tempo
não vemos as borboletas. Esse velho casarão só é suportável graças ao barulho
das crianças correndo pelo chão de madeira e suas doces risadas. À medida que
nossa adolescência chegou ficou mais difícil lidar com o abandono e o fim das
expectativas. Quem seremos ao completar 18 anos e o imenso portão de ferro ser
finalmente aberto para seguirmos o caminho da liberdade? Essa pergunta se torna
ofuscada diante dos últimos acontecimentos e da emergência que lidamos com
nossos conflitos adolescentes. Amanhã eu e mais dez internos seremos
encaminhados para outra unidade. A única coisa que sei é o que os meus olhos
presenciaram: É um lugar imenso e inovador, a dona é uma viúva bondosa e
milionária.
Centro
de Orientação para Crianças e Adolescentes – Instituto Emilly Rodwell
— Sejam bem-vindas, crianças! A
princípio pode parecer assustador trocar um orfanato pelo meu centro de
orientação psicológica, mas garanto que logo nunca mais desejarão sair daqui!
Quando
chegamos a Dra. Emilly nos recepcionou com doçura, um largo sorriso e um
esplendoroso banquete. Ao fundo eu vi uma garotinha de aproximadamente sete
anos, cabelos loiros e encaracolados nos observando, estava com os braços para
trás escondendo as mãos, em seguida correu até sumir entre um raio de sol no
fim do corredor. Eu já tinha ouvido falar muito da Dra. Emilly, dos seus
diversos filhos adotivos e de todas as crianças e adolescentes com problemas
psicológicos que eram encaminhados para o seu instituto, todas as pessoas da
cidade a veneravam e a fama da sua clínica fazia com que muitos pais também
trouxessem seus filhos até mesmo de Londres, para esse pequeno e bucólico
interior inglês. Falava-se também que ela possuía um filho que havia ido
estudar na América para depois de formado assumir seu lugar. Não imaginávamos
submergir nessa espécie de labirinto abissal.
Nossas
mãos estão cada vez mais machucadas, aqui tudo é de madeira, e como todos os
nossos comandos são feitos com palavras desenhadas por arranhões de canivete,
muitas vezes sobram farpas soltas e cortantes. Há um mês estamos aqui, pude
sentir ao tocar o calendário feito em um dos diversos informantes que compõe esse
lugar. Não há uma fresta de luz, quem selou o ambiente, o fez perfeitamente
bem, sem cometer um único deslize. Também nunca escutamos nada além dos nossos
próprios choros e gemidos, o que me faz pensar que também há um incrível
isolamento acústico. Tudo que nos é oferecido é liberado através do nosso tato,
as palavras que tocamos pode ser o diferencial entre um prato delicioso ou um
veneno.
Nos
últimos dias eu tenho tocado obcecadamente um pedaço do chão que parece conter
uma espécie de mapa. Como minhas mãos já estão completamente inutilizadas de
tanto ferimento comecei a usar os dedões dos pés. À noite tenho sonhado com a
garotinha dos cabelos encaracolados, ela sussurra no meu ouvido “É como um
jogo, se você entrou precisa achar como sair” em seguida corre saltitante até
sumir novamente naquele imenso corredor.
Estão
todos perdidamente distraídos com as recompensas dos seus ferimentos e eu com
desvendar esse mapa. Há três dias não como, comer requer muito tempo e muita
dor até tocarmos e lermos todas as palavras corretas já é fim do dia e não acho
que um sanduíche maravilhoso, água e lençóis limpos compensem tanto sofrimento.
O
mapa vai até a quina de uma parede e meu cotovelo esbarrou acidentalmente em
uma farpa que me fez descobrir uma seta indicando algo acima. Pela primeira vez
consegui ficar em pé, estávamos sempre ajoelhados, pois todas as vezes que
tentávamos levantar batíamos a cabeça numa espécie de piso superior. Pude
sentir com as mãos o que se parecia com o primeiro degrau de uma escada, dei um
enorme solavanco e consegui prender meus braços ao tabique. Subi correndo uma
longa escadaria, sem enxergar absolutamente nada, dei de cabeça na madeira. Foi
a primeira vez que deixei o desespero me consumir. Não poderia aceitar que
minha última esperança estava fadada ao fracasso, então comecei a esmurrar
incessantemente aquela maldita madeira até que um feixe de luz fez os meus
olhos lagrimarem de tanta ardência. Continuei esmurrando até ter espaço
suficiente para que meu corpo passasse. Eu tinha finalmente me libertado das
amarras do engano. Pude sentir o vento.
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