Enquanto Ela Dormia - Naiane Nara



Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Naiane Nara ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



Enquanto Ela Dormia


Naiane Nara

*conto inspirado no quadro O Pesadelo de Henry Fuseli



Preciso me conter para poder assistir o maravilhoso espetáculo. Seu corpo em deliciosa negligência me tenta de mil maneiras diferentes, mas me mantenho parado a observar. Cada ocasião faz ser diferente, cada vez é sempre como se fosse a primeira.
Suspiro, tentando conter um arquejo de satisfação. Sua pele é tão linda e aconchegante. Sempre escolhe as posições mais engraçadas do mundo para dormir e ainda assim permanece encantadora. Como isso é possível?
Hoje está com as pernas em formato de quatro, um braço embaixo do travesseiro e o outro em um estranho ângulo, dobrado em si mesmo. Sorri levemente e meu coração se derrete de novo, como na primeira vez em que nos encontramos, você lembra?
A praia ganhava tons de vermelho róseo naquele entardecer. Eu estava deitado na areia observando o céu, quando me sentei para poder apreciar o vinho que havia trazido e voilá: meus olhos pousaram em você e nunca mais fui o mesmo.
Você encarava o horizonte com ternura e sua pele morena estava dourada pelo Sol que ousou te tocar. Quando finalmente me olhou de volta decidi que ninguém mais voltaria a te tocar, você era minha.
Mas amor, penso tanto nas coisas que não diz. Nos silêncios prolongados no meio da noite, nas vezes em que seu sorriso lindo não chega aos olhos. Pensará acaso que estar unida a mim te priva dos prazeres de estar com outras pessoas?
Não te dou motivos para isso, minha princesa. Você é a divindade do meu templo e te protegerei da profanação do toque dos outros, até mesmo dos olhares. Ah, como os olhares incomodam, queimam, ardem como brasa. No início, você os rejeitava, hoje já não tenho tanta certeza…
Amor, pensa em estar com outros homens? Pensa naqueles amigos que em suas palavras são apenas amigos, mas que talvez em sua mente sejam algo mais? Eles com certeza pensam em muito mais. Você é linda demais para pertencer a um único homem. Linda demais para que o homem que te tenha não viva o inferno a todos os minutos por medo de te perder para os outros.
Não posso me descontrolar, sinto repulsa pelo que se move dentro de mim ao sabor desses pensamentos. Vou te admirar na adoração do silêncio desta madrugada, vou rir das posições engraçadas que se coloca ao dormir e te despertarei com um beijo doce e suas frutas prediletas ao primeiro sinal da manhã.
Suas mãozinhas sinuosas se juntam e se aninham em seu peito, bem perto do coração. Seus lábios ensaiam novamente um início de sorriso; é tão inocente a expressão do seu rosto! Como eu poderia duvidar, meu bem, de que é minha e quer estar apenas comigo? Te manterei a salvo dos homens desse mundo podre e de seus desejos sujos, pode ficar tranquila.
Gostaria de ter filhos com você. Com certeza seriam deslumbrantes as nossas crianças… Mas a minha condição física não permite. E se não é possível que eu seja o pai dos seus filhos, não será mãe enquanto respirar, o que é realmente algo a se lamentar. O mundo precisa dos seus genes, da sua beleza, do seu calor.
Mas você é minha, e só irá onde eu for, não é mesmo, meu grandioso amor?
Seus longos cabelos se espalham deliciosamente pelos lençóis. Não me contenho e me aproximo para sentir melhor o seu perfume. Quero tocá-la e fazer com que seja minha mais uma vez, mas te despertar de seu sono me parece um sacrilégio sem fim.
Todavia, sua boca se move em um sussurro e escuto o que jamais desejaria. Por que seu cheiro teve que ser tentador ao ponto de querer me aproximar? Se estivesse só te admirando longe, talvez não tivesse ouvido. A quem estou tentando enganar? De todo o jeito eu saberia. Seus olhos infiéis te denunciariam, antes de tudo.
Quantas vezes não terá rido de mim, com essa boca que tenho adorado? Quantas vezes sua pele foi conspurcada pelo contato desse outro homem que não te merece? Diga, diga!
Não posso suportar te perder, amor. Você é minha, só minha. Diga que se arrepende, que foi um erro, diga! Quero ouvir sua voz admitindo que é minha e posso te perdoar, fingir que nada aconteceu…
Mas ordinariamente desejando me contrariar, você sussurra novamente o nome de outro homem e sorri com ternura, a ternura do sonho e da liberdade.
Não consigo mais me controlar. Meu pulso direito se quebra, fazendo minha mão se mover inteiramente para trás, libertando assim meu verdadeiro eu.
Mais rápido do que eu desejaria, minha mão esquerda envolve seu pescoço com uma carícia assustadora. Desperta enfim, com os olhos suplicantes, me encarando como se não existisse culpa alguma e ainda me pertencesse.
Como pôde? Eu te daria o mundo! E droga, não estou falando através de metáforas.
Minha casca humana se quebra enfim, rapidamente, sem que possa acompanhar. Então seu olhar se enche de assombro ao visualizar minha verdadeira pele, minhas asas escamosas, meus olhos amarelos e arredios, furiosos.
O toque da sua pele na minha me enche de desejo e por isso irei matá-la ainda mais lentamente. Por que você não me ama, nunca me amou. Tudo não passou de uma grande mentira, o Pai tinha razão sobre vocês.
Agora com o coração doendo, faço algo que jamais imaginei que fosse fazer. Abro a bocarra da qual tenho tanto orgulho e te devoro aos poucos enquanto grita.
Por favor, não pare. Gritos me excitam…

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