Sozinho - Naiane Nara



Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Naiane Nara ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



Sozinho


Naiane Nara


*conto inspirado na canção One do Metallica

É escuro e frio o meu terror. Não consigo precisar quanto tempo se passou desde que começou, mas parece que deitar-me na grama em um dia ensolarado foi há muito, muito tempo. Fragmentos são tudo que me vem, nada de lembranças completas com começo, meio e fim. Não sei, talvez isso seja um sonho. A realidade não pode ser tão escura e desesperadora.
Tento mais uma vez me mover, sem sucesso. É como se estivesse submerso, meu corpo está pesado, sinto e não sinto ao mesmo tempo. Abro e fecho a boca diversas vezes, sem ter certeza se consigo emitir som. A propósito, nenhum barulho aqui, nada mesmo, só o silêncio esmagador me mantendo fixamente prisioneiro.
Vem a minha mente mais uma vez a memória de um rosto de mulher de meia idade sorridente me trazendo intensa felicidade, a sensação morna do sol na minha pele, o cansaço após correr por muito tempo, a dor nos braços e ombros, que junto com a respiração difícil me sufocaram tanto em dias cinzentos.
Esses últimos fragmentos, os mais assustadores, não são difíceis de reconhecer. Embora não me lembre quem é a mulher sorridente e nem consiga sentir o calor do Sol, ou ver qualquer coisa além de espessas trevas, é fácil identificar ao menos o que eu era nesses lembranças amargas de correria, choque e morte em dias sem cor.
Guerra. Eu era um soldado participando de uma batalha, com certeza. Talvez mais de uma. Se esta memória estiver correta, não devo ter mais que trinta e alguns anos. Ainda no auge da plenitude física, por quanto tempo eu tenho que prosseguir minha vida nesse limbo onde o tempo passa pesadamente, como se estivesse congelado?
Uma pequena pontada de dor no ombro direito me traz de volta de minhas indagações. Então eu sinto alguma coisa. Não devo estar tão mal assim. Tento puxar mais uma vez alguma memória recente, para lembrar se fui ferido. Não tenho êxito, porém essa pequena dor me trazendo de volta é capaz de me dizer que sim, fui ferido, embora não saiba precisar a gravidade.
Ainda não ouço nada, mas a dor se alastra de forma devastadora, de um ombro a outro, de uma omoplata a outra, até que parece que estou em chamas que nunca se apagam. Minha boca se abre para pedir ajuda, mas o som está saindo? Não sei dizer…
De repente, a agulha causando uma dor ainda pior, para em seguida tudo se aquietar. Alguma coisa, um tubo, colado a mim, talvez? Só sei que a dor começa a fraquejar até sumir, assim como minha força de vontade. Por quanto tempo estou assim? Ou o que é pior, sendo um homem relativamente jovem, por quanto tempo posso ficar assim?
A tontura leva os últimos vestígios de dor, enquanto tento manter presa a minha respiração. Isso não é uma vida para se viver. Quero viver, não permanecer nesse estado por tempo indeterminado, apenas sobrevivendo. Oh, Deus, por favor, não. Me ajude a acordar. Será que ainda sei rezar?
Pai Nosso…
Pai…
Que está nos céus…
Meus olhos ardem mesmo em meio da escuridão espessa. Não posso chorar. Não, não sou um covarde.
E num clarão, alguém gritando por mim. “Não seja um covarde! É o inimigo ou você!”
Em seguida, vidraças se quebrando, o som ensurdecedor fazendo algo quente escorrer de meus ouvidos e narinas. O terror de estar no chão em segundos sem conseguir se mover, sem conseguir se levantar. Colegas se afastando, caindo também. Alguns sem os braços, sem as pernas. Outros sem ambos, apenas o tronco sangrento restando. Olhei para mim e me reconheci entre os últimos infelizes. Uma explosão, mais fumaça, e minha consciência me abandonando lentamente.
Tento me mover de novo, freneticamente, querendo rezar, gritar e amaldiçoar. Minha respiração entrecortada só me deixa mais cansado. Não, não pode ser. Eu não posso já estar condenado.
Pela primeira vez desde que me recordo, consigo sentir alguma coisa, após tentar me movimentar tanto. É isso, o resultado, a razão. Preciso lutar para me recuperar, vou sair dessa, vou andar novamente, sentir a luz e fazer aquela mulher sorrir de novo. Vou comer um hambúrguer e fazer um churrasco, vou sim.
Ainda tentando me mover, consigo divisar um vulto branco e a voz longínqua, mas não consigo ver detalhes ou entender o que me diz. O vulto me toca no ombro, e o movimento não continua ao longo do braço. Nas pernas, a mesma coisa, o toque levíssimo vem apenas até o alto das coxas, sem continuar…
Grito insanamente, mesmo tendo a terrível certeza de que ninguém me escuta, se é que realmente estou conseguindo falar em vez de só mover a boca. Faço o esforço sobre-humano e insensato de tentar me mover uma vez mais, agora conseguindo apenas mergulhar na exaustão, sem atrair atenção alguma.
Meus olhos ardem de novo e dessa vez não tenho forças para conter o desespero. Sou o resto de um ser humano, aprisionado em meu próprio corpo, sem conseguir ouvir, falar, ver ou andar. Num instante, a mulher sorridente está na minha frente: “Queria ter sua saúde de ferro.”
A lembrança se esvai, lenta e dolorosamente. Posso viver por anos, décadas, nesse inferno, sem morte e sem vida. Oh Deus, por favor, me ajude a morrer.

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