Anjo da Morte - C. B. Kaihatsu


Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
C. B. Kaihatsu ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



Anjo da Morte

 C. B. Kaihatsu


“E quando ela adoeceu – e morreu – a abençoastes!

Como podeis cumprir tais ritos, cantar-lhe o funéreo hino?

Como, se vosso olho é maldito, vossa língua viperina?

Se a inocência roubastes a quem tão jovem matastes?”

(Lenore – Edgar Allan Poe)

 

A casa toda estava imersa num breu, exceto o quarto que era parcialmente iluminado pela chama de uma vela. Relâmpagos rasgavam o céu, os pingos de chuva caíam furiosamente no telhado, o barulho do vento castigando a copa das árvores mais parecia um lamurio, era a natureza fazendo uma sinfonia insana.

Augusto observava vidrado a vela queimar, tentava não pensar em coisa alguma. Ele supôs que, talvez, se conseguisse concentrar-se em algo, como apenas observar a chama se extinguir, manteria sua sanidade.

Havia dois dias que o homem não dormia. Trancou-se em casa com medo do que vira, nunca fora religioso, mas nessas duas noites que passou em claro, ele pediu para que Deus tivesse piedade de sua alma.

Jamais conseguiria esquecer daqueles olhos. Olhos que outrora lhe enchiam o peito de felicidade, agora eram soturnos e sem vida. Ainda carregava em seu íntimo a culpa por desvencilhar-se dela. Sentiu repulsa ao ver o cadáver demasiado pálido de sua finada noiva. Suas mãos, macias em vida, já se mostravam carcomidas. O cheiro de carne putrefata alastrou-se quando os outros cadáveres emergiram de seus túmulos. Augusto correu como nunca, contudo, ainda olhou para trás uma última vez e viu o olhar colérico que sua amada Olga lhe lançou.

Refugiou-se em sua casa, como se essa fosse uma fortaleza. Sabia que sua queda era iminente, entretanto, tentaria resistir o máximo possível. A chuva apertou, a sinfonia que se fazia lá fora era macabra, aumentando o desespero de Augusto ainda mais.

Ele não sabia o motivo de Olga querer vingar-se no pós-morte, uma vez que haviam sido felizes em vida. Desde que a conhecera sua vida fora devotada a ela até o dia de sua morte.

Olga foi acometida por um doença, até então desconhecida, e veio a óbito em poucos dias, Augusto não encontrava-se na cidade, porém conseguiu chegar a tempo para o velório. Ela estava vestida com um vestido branco, na cabeça uma coroa de margaridas, parecia uma noiva.

No que se transformara sua amada? Se ela possuísse asas, diria que seria tal qual uma Willi, personagem do libreto do poeta Théophile Gautier para o famoso ballet Giselle. As willis eram espectros de noivas que morreram antes do casamento. Contudo, eram descritas como fantasmas de beleza etérea, já Olga estava entre o nefando e o etéreo.

O ritmo do coração de Augusto estava cada vez mais acelerado, ele pensou que talvez morreria de um ataque cardíaco antes que Olga viesse busca-lo e leva-lo para o que há além da vida.

Em meio ao som do vento, ele pôde identificar múrmuros que à medida que se aproximavam, ficavam mais audíveis e inteligíveis. Várias vozes que diziam em um coro, “Augusto, aquele que é sagrado. És sagrado apenas no nome, sua alma é blasfema e em breve será nossa! Apressa-te a confessar seus pecados, nós vamos buscar sua alma!”.

Augusto foi tomado de pavor, não sabia se o que ouviu era real, se estava dormindo e tendo um terrível pesadelo, ou ainda se estava perdendo a sanidade. Pensou que talvez fosse a última opção, seus nervos estavam em frangalhos.

A vela que estava a queimar terminou como o findar de uma vida. Enquanto tateava em seu bolso à procura do isqueiro, o homem lembrou-se das histórias que lhe foram contadas da mitologia grega, sobretudo a das Moiras, responsáveis por determinar a duração da existência de cada indivíduo. Amaldiçoaria as três irmãs por terem partido o fio da vida de Olga antes do dele e no auge de sua juventude. Desafiaria os deuses se preciso fosse, ou, tal como Orfeu faria um acordo com Hades.

Junto com a nova chama sombras fantasmagóricas surgiram na parede, no início pareciam formas de seres monstruosos, essas formas tomaram novos contornos de silhuetas humanas. Elas se contorciam com o tremeluzir das chamas, gritos e lamentos ecoavam pelas paredes, deixando Augusto atordoado.

“Você nos deixou queimar e em breve queimará também!”, diziam as sombras. As vozes começaram a proferir frases desconexas e logo se transformaram em ensurdecedores urros de dor.

O calor daquela pequena chama tornou-se extraordinariamente intenso, Augusto suava em bicas, sua pele começou a arder. “Você queimará! Juntar-se-á a nós”. Soprou o mais forte que pôde, mas a vela não apagou. Nem a água a fez cessar. Desesperado, Augusto atirou a vela pela janela.

As sombras sumiram, mas ele sentiu uma presença, sabia que não estava sozinho. O calor deu lugar a um frio excessivo. Todo o seu corpo tremia, suas mãos estavam congelando, mal conseguia mover os dedos. Pelo menos aquelas almas sofredoras se foram, ele pensou. Ledo engano pensar que na escuridão teria melhor sorte.

Havia algo no ar que estava sufocando-o, sentiu uma brisa gélida que passava pelos seus pulsos e tornozelos, fechando-se em torno deles como se uma mão o estivesse tocando. Mãos invisíveis também se fecharam em volta de seu pescoço. Augusto não conseguia respirar, tentou em vão gritar, não conseguia emitir som algum.

O homem sentia as mãos imateriais apertarem ainda mais seus pulsos, tornozelos e pescoço. Um voz feminina sussurrou em seu ouvido a mesma frase repetidas vezes. A princípio ele não havia reconhecido, mas depois a identificou com uma citação da tragédia shakespeariana “Romeu e Julieta”. Era uma das falas de Benvólio Montecchio, primo de Romeu. “Ah! Que aparência tenha amor tão branda, mas, de fato, seja áspero e tirano!”. Augusto pensou na ironia que a vida havia lhe preparado, ser aterrorizado com as palavras de uma tragédia de dois amantes.

Augusto conseguiu desvencilhar um dos pulsos e alcançou o isqueiro no bolso. A pequena chama fez o que quer que fosse desaparecer como mágica. O clima do ambiente ficou ameno e a chuva cessou.

Confiou sua vida aquela pequena chama, sua intuição lhe dizia que enquanto ela estivesse acesa, estaria a salvo. Estava quase vencido pelo cansaço, mas sabia que não poderia dormir. Precisava estar preparado para os seus algozes.

Apesar da tranca, reforçada no dia anterior, a maçaneta girou e a porta se abriu com facilidade. Augusto viu a imagem da qual esteve fugindo nos últimos dias, Olga. Ela parecia um anjo, um anjo da morte. Não estava viva, contudo, tampouco aparentava estar completamente morta. Seus doces olhos agora tinham uma aparência demoníaca que pareciam enxergar-lhe a alma.

Um séquito de jovens acompanhavam Olga, algumas em estágio de decomposição mais avançado que o das outras. Antes que Augusto pudesse dizer alguma coisa, Olga tomou a palavra.

— Ah! Por que me abandonaste, Augusto? Quando me deu um anel e seu coração disse que estaria sempre comigo. Mas tu me abandonaste para morrer sozinha.

— Nunca! Amei-te até o findar de sua vida! Amo-te agora também!

— Mentira! És um grande mentiroso! Pensas que não vejo o horror em seu olhos ao mirar-me?

— Como todo ser vivente, o meu horror é à morte! Nunca a ti! Eu não sei o que lhe fiz, ou qual seria o meu pecado mortal! No entanto, diante de ti e de nosso Senhor — disse segurando o crucifixo que trazia no peito, presente de Olga para protege-lo, a despeito de sua pouca fé — eu peço perdão pelo mal que, porventura, eu tenha lhe causado.

— Palavras vazias de significado são o que saem de sua boca enganadora! Mas hoje receberás o castigo que merece!

— Já que és acusadora, juíza e executora, poderia ao menos saber quais são os crimes tão hediondos que dizes que cometi?

Olga ponderou por um momento, mas assentiu. Apesar do coração ferido, ainda sentia amor por Augusto.

— Tua cobiça fora maior que o amor que dizia ter por mim. Deixou-me sozinha para morrer para ir atrás das incalculáveis riquezas que lhe prometeram. Eu nunca lhe pedi riquezas, meu amante embusteiro.

— Não me tome por um embuste, Olga. Tudo o que fiz foi pensando em ti!

— Em mim? Quando me traíste também foi pensando em mim? Minha morte fora dolorosa. Sucumbi de tristeza, enferma e solitária.

— Sempre fui fiel a ti! Se algo diferente lhe foi dito, afirmo com veemência que estavas cercada de Iagos[1]!

— Já basta de suas mentiras! Eis que chegou a hora de nos unirmos na morte!

— Se assim deseja, assim será!

Augusto resignou-se, aceitaria o que fosse lhe acontecer sem protestar. Olga aproximou-se e acariciou o rosto dele com suas mãos, ou o que restara delas. Os lábios frios dela tocaram os dele. O último beijo que ele não pôde lhe dar em vida. Esse era um beijo da morte. Augusto sentiu a vida esvair-se de seu corpo aos poucos. As mulheres que acompanhavam começaram a beijá-lo também. Seu pescoço, ombros, braços, ele sentia as garras da morte em cada beijo.

Quando o corpo de Augusto jazia sem vida no chão, Olga e suas aliadas sumiram na escuridão. Fora encontrado por seus companheiros de saques, quando estes deram por falta dele. Ninguém soube explicar o que levara o homem ao óbito. Uma porção de lendas surgiram acerca de sua morte misteriosa.

Para honrá-lo, seus amigos lhe fizeram um sepultamento digno, sua sepultura foi ao lado da de Olga. “Enfim juntos, na vida e na morte”.

Aqueles que ousavam entrar no cemitério à noite diziam ver uma mulher de branco chorar no sepulcro de Augusto.

 



[1] Iago é personagem de ‘Otelo’, famosa obra de William Shakespeare. Iago induz Otelo a pensar que sua esposa Desdêmona havia lhe traído.


 

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