Ressurreto - Naiane Nara
Ressurreto
Naiane Nara
Meus pés estão intensamente doloridos e
praticamente já nem sinto os dedos da mão. As coxas ardem, os braços estão tão
cansados que mal posso levantá-los; porém preciso continuar, falta muito pouco.
Seis horas nesse vai e vem, e finalmente consigo chegar perto dele, o trampolim
para meu objetivo, o meu alvo da noite: o trineto do falecido D. Pedro II, meu
ídolo, que Deus possa tê-lo em bom lugar.
— Me permite?
Ao contrário do que poderia imaginar, minha voz
sai sem falhas e o sorriso permanece congelado no rosto. Minhas mãos suam nos
poucos segundos em que nossos olhares se encontram, enquanto ele me passa a
taça vazia. O príncipe mal registra minha presença, mas eu vou guardar esse
encontro para o resto da vida.
Sigo pelo salão sem prestar atenção a nada,
ignorando os chamados. Sentindo o rosto queimar de excitação, abandono a
bandeja assim que chego à cozinha. Segurando a taça com a mão esquerda, abro o
alojamento dos garçons e tateio com a direita, à meia-luz, para encontrar e
abrir meu armário. Retiro minha mochila já previamente deixada entreaberta e
puxo o lenço macio que guardaria aquela preciosidade.
Respirando fundo, me livro das luvas e do smoking.
Parece que vejo tudo vermelho, mas não posso parar e descansar agora, tenho
pouquíssimo tempo para concluir minha missão. Saindo com a mochila nas costas e
minha roupa comum, ouço ao longe me chamarem para voltar. Ignoro, agora não
existe mais volta para mim.
O vento em meu rosto me mantém em alerta enquanto
piloto minha moto de forma alucinada para chegar rapidamente ao meu santuário.
Finalmente as preocupações e dissabores chegarão ao fim. Inspiro o ar gelado
com delícia, sentindo o peito se abrir pela primeira vez em anos. O desgosto
com os rumos que o país tem tomado nos últimos anos parece desaparecer. Que bom
que não me acomodei como a maioria e tomei uma atitude para mudar tudo. E o
melhor: utilizando minha profissão para isso.
Cheguei ao santuário, me purificando com um banho,
jamais ousaria entrar na câmara trazendo a imundície de fora. Ao vestir roupas
limpas e pegar o pano macio envolvendo a taça, meu peito se enche de esperança.
Estou a literalmente poucos passos de trazer um futuro maior e mais brilhante
ao meu país. Sem violência, sem pessoas morrendo por falta de cuidado em
hospitais. Sem corrupção, o Brasil se erguendo como a potência que merece ser,
comandada por um líder digno. Finalmente trazendo para a realidade as palavras:
“Deitado eternamente em berço esplêndido”.
Ao entrar da forma mais respeitosa que pude,
divisei meus cúmplices: Gilberto e Ana. Meus parceiros de vida e profissão, os
amores de toda uma existência, que compartilham o meu sonho e se sujeitam a
todos os riscos comigo. Soubemos assim que vimos; tinha de ser feito. E aqui
estamos.
Os passos que me separam de onde eles estão
ajoelhados me trazem o assombro do passado, quando fomos convidados para fazer
parte da exumação do imperador D. Pedro II, que perdeu o reinado vítima de um
golpe cruel. Eu como renomado historiador, Gilberto como um reconhecido biólogo
e Ana como uma talentosa arqueóloga, formamos uma tríade muito desejada nesse
tipo de evento. Estivemos animados, é claro, mas sem saber que presente a vida
estava nos trazendo. Ao abrir a tumba, o corpo do falecido monarca estava
extremamente conservado. Mumificado como o corpo de sua madrasta, a Imperatriz
Amélia de Leuchtenberg, a prova cabal da santidade de
ambos.
Enfim ao lado dos meus amados, diante do corpo do
Imperador. Eles se levantam para ficar de pé ao meu lado. Gilberto me passa o
cálice e Ana despeja o líquido mágico que demoramos tanto tempo para conseguir
produzir. Só faltava um ingrediente, e eu o trouxe essa noite: DNA de um
descendente.
Despejo o conteúdo do cálice que Gilberto me passa
na taça que trouxe comigo, e uma luz azulada toma conta do ambiente. A poção da
ressurreição está pronta mais uma vez, após milhares de anos. Começamos os
cânticos antigos em latim, sânscrito e copta, cada um em sua língua favorita.
Após derramar a poção em cima da face do monarca, nos ajoelhamos. A luz se
concentra no corpo do Imperador, enquanto risadas escabrosas ecoam. Demônios
terríveis com asas de morcegos passeiam pelo salão dizendo que somos burros o
suficiente para abrir o portal, em nossa própria língua. Nos demos as mãos,
permanecendo firmes. Era necessário e estava feito.
Os berros e risadas aterrorizantes continuam por
um tempo que não sabemos precisar, até que finalmente o silêncio nos abraça, o
que é um alívio após o barulho quase ensurdecedor. Nos encaramos ao notar uma
movimentação sobre a mesa, ansiosos. D. Pedro II se levanta. Deus, ele se
levanta! Sentado, grunhe palavras ininteligíveis e seu corpo permanece
putrefato, ainda sem a vitalidade completa. Ana me olha apreensiva e após uma
hesitação visível, tem coragem de perguntar:
— Ele vai ficar assim?
Confesso que é assustador ver esse espetáculo,
então não consigo formular uma resposta coerente. É Gilberto que responde,
serenamente:
— É momentâneo. Não se preocupe, Nan. Ele só
precisa de nossa ajuda para reaprender como é estar vivo. Sua alma está aqui
conosco agora, sua nobre alma.
Eu inspiro profundamente, o alívio tomando conta
do meu corpo. Um líder digno e dedicado ao seu povo, e nós o trouxemos de
volta. O sorriso de felicidade chega aos meus lábios:
— É tudo
que precisamos.
Me afasto então para trazer a adaga ritualmente
preparada. Finalmente, depois de séculos de podridão da República, ficaremos
bem. Me viro para retornar e fazer a oferta de sangue. O sorriso de Ana e a
confiança de Gilberto são como um Sol rompendo as nuvens, meu amanhecer
particular. Ele dá dois passos em minha direção, me estendendo as mãos, e
parece que foi o portal do Paraíso que se abriu, não do Inferno.
Os grunhidos mudam, estão mais baixos e graves.
Ana se aproxima para tentar entender o que Vossa Majestade diz, e então meu
mundo se converteu em tormento, quando o monarca quase arranca o pescoço dela
com uma dentada descomunal. Não há tempo para gritos. Gilberto só consegue
apoiar o corpo dela para que não caia no chão enquanto ele berra, sem conter o
choro. Então tudo se converte em silêncio quando aquela coisa pavorosa que um
dia foi Pedro II dá um golpe com as unhas mão esquerda, rasgando o rosto de
Gilberto a ponto dos dentes e ossos do maxilar ficarem visíveis e um globo
ocular despencando para fora enquanto o outro perde o brilho.
Os corpos dos meus amados caem no chão frio, ainda
agonizando em poças de sangue que parecem brilhar. Eu ainda tenho a adaga ainda
nas mãos, mas estou dolorosamente consciente de que não serve para nada.
A coisa se coloca em pé com um rosnado, se vira na
minha direção e sorri.
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