Ressurreto - Naiane Nara


 

Cinco. Cinco vogais. Cinco sentidos. Cinco amigos. Cinco escritores. Camila, Meg, Morphine, Naiane e Natasja, esse é o Clube dos Cinco. Eles se reúnem à meia-noite em volta de uma fogueira, abrem uma boa garrafa de vinho e contam histórias.
Naiane Nara ergueu sua taça e disse de modo solene: “Declaro iniciada a reunião do Clube dos Cinco. Espero que apreciem a minha história”.



Ressurreto


Naiane Nara


Meus pés estão intensamente doloridos e praticamente já nem sinto os dedos da mão. As coxas ardem, os braços estão tão cansados que mal posso levantá-los; porém preciso continuar, falta muito pouco. Seis horas nesse vai e vem, e finalmente consigo chegar perto dele, o trampolim para meu objetivo, o meu alvo da noite: o trineto do falecido D. Pedro II, meu ídolo, que Deus possa tê-lo em bom lugar.

— Me permite?

Ao contrário do que poderia imaginar, minha voz sai sem falhas e o sorriso permanece congelado no rosto. Minhas mãos suam nos poucos segundos em que nossos olhares se encontram, enquanto ele me passa a taça vazia. O príncipe mal registra minha presença, mas eu vou guardar esse encontro para o resto da vida.

Sigo pelo salão sem prestar atenção a nada, ignorando os chamados. Sentindo o rosto queimar de excitação, abandono a bandeja assim que chego à cozinha. Segurando a taça com a mão esquerda, abro o alojamento dos garçons e tateio com a direita, à meia-luz, para encontrar e abrir meu armário. Retiro minha mochila já previamente deixada entreaberta e puxo o lenço macio que guardaria aquela preciosidade.

Respirando fundo, me livro das luvas e do smoking. Parece que vejo tudo vermelho, mas não posso parar e descansar agora, tenho pouquíssimo tempo para concluir minha missão. Saindo com a mochila nas costas e minha roupa comum, ouço ao longe me chamarem para voltar. Ignoro, agora não existe mais volta para mim.

O vento em meu rosto me mantém em alerta enquanto piloto minha moto de forma alucinada para chegar rapidamente ao meu santuário. Finalmente as preocupações e dissabores chegarão ao fim. Inspiro o ar gelado com delícia, sentindo o peito se abrir pela primeira vez em anos. O desgosto com os rumos que o país tem tomado nos últimos anos parece desaparecer. Que bom que não me acomodei como a maioria e tomei uma atitude para mudar tudo. E o melhor: utilizando minha profissão para isso.

Cheguei ao santuário, me purificando com um banho, jamais ousaria entrar na câmara trazendo a imundície de fora. Ao vestir roupas limpas e pegar o pano macio envolvendo a taça, meu peito se enche de esperança. Estou a literalmente poucos passos de trazer um futuro maior e mais brilhante ao meu país. Sem violência, sem pessoas morrendo por falta de cuidado em hospitais. Sem corrupção, o Brasil se erguendo como a potência que merece ser, comandada por um líder digno. Finalmente trazendo para a realidade as palavras: “Deitado eternamente em berço esplêndido”.

Ao entrar da forma mais respeitosa que pude, divisei meus cúmplices: Gilberto e Ana. Meus parceiros de vida e profissão, os amores de toda uma existência, que compartilham o meu sonho e se sujeitam a todos os riscos comigo. Soubemos assim que vimos; tinha de ser feito. E aqui estamos.

Os passos que me separam de onde eles estão ajoelhados me trazem o assombro do passado, quando fomos convidados para fazer parte da exumação do imperador D. Pedro II, que perdeu o reinado vítima de um golpe cruel. Eu como renomado historiador, Gilberto como um reconhecido biólogo e Ana como uma talentosa arqueóloga, formamos uma tríade muito desejada nesse tipo de evento. Estivemos animados, é claro, mas sem saber que presente a vida estava nos trazendo. Ao abrir a tumba, o corpo do falecido monarca estava extremamente conservado. Mumificado como o corpo de sua madrasta, a Imperatriz Amélia de Leuchtenberg, a prova cabal da santidade de ambos.

Enfim ao lado dos meus amados, diante do corpo do Imperador. Eles se levantam para ficar de pé ao meu lado. Gilberto me passa o cálice e Ana despeja o líquido mágico que demoramos tanto tempo para conseguir produzir. Só faltava um ingrediente, e eu o trouxe essa noite: DNA de um descendente.

Despejo o conteúdo do cálice que Gilberto me passa na taça que trouxe comigo, e uma luz azulada toma conta do ambiente. A poção da ressurreição está pronta mais uma vez, após milhares de anos. Começamos os cânticos antigos em latim, sânscrito e copta, cada um em sua língua favorita. Após derramar a poção em cima da face do monarca, nos ajoelhamos. A luz se concentra no corpo do Imperador, enquanto risadas escabrosas ecoam. Demônios terríveis com asas de morcegos passeiam pelo salão dizendo que somos burros o suficiente para abrir o portal, em nossa própria língua. Nos demos as mãos, permanecendo firmes. Era necessário e estava feito.

Os berros e risadas aterrorizantes continuam por um tempo que não sabemos precisar, até que finalmente o silêncio nos abraça, o que é um alívio após o barulho quase ensurdecedor. Nos encaramos ao notar uma movimentação sobre a mesa, ansiosos. D. Pedro II se levanta. Deus, ele se levanta! Sentado, grunhe palavras ininteligíveis e seu corpo permanece putrefato, ainda sem a vitalidade completa. Ana me olha apreensiva e após uma hesitação visível, tem coragem de perguntar:

— Ele vai ficar assim?

Confesso que é assustador ver esse espetáculo, então não consigo formular uma resposta coerente. É Gilberto que responde, serenamente:

— É momentâneo. Não se preocupe, Nan. Ele só precisa de nossa ajuda para reaprender como é estar vivo. Sua alma está aqui conosco agora, sua nobre alma.

Eu inspiro profundamente, o alívio tomando conta do meu corpo. Um líder digno e dedicado ao seu povo, e nós o trouxemos de volta. O sorriso de felicidade chega aos meus lábios:

  É tudo que precisamos.

Me afasto então para trazer a adaga ritualmente preparada. Finalmente, depois de séculos de podridão da República, ficaremos bem. Me viro para retornar e fazer a oferta de sangue. O sorriso de Ana e a confiança de Gilberto são como um Sol rompendo as nuvens, meu amanhecer particular. Ele dá dois passos em minha direção, me estendendo as mãos, e parece que foi o portal do Paraíso que se abriu, não do Inferno.

Os grunhidos mudam, estão mais baixos e graves. Ana se aproxima para tentar entender o que Vossa Majestade diz, e então meu mundo se converteu em tormento, quando o monarca quase arranca o pescoço dela com uma dentada descomunal. Não há tempo para gritos. Gilberto só consegue apoiar o corpo dela para que não caia no chão enquanto ele berra, sem conter o choro. Então tudo se converte em silêncio quando aquela coisa pavorosa que um dia foi Pedro II dá um golpe com as unhas mão esquerda, rasgando o rosto de Gilberto a ponto dos dentes e ossos do maxilar ficarem visíveis e um globo ocular despencando para fora enquanto o outro perde o brilho.

Os corpos dos meus amados caem no chão frio, ainda agonizando em poças de sangue que parecem brilhar. Eu ainda tenho a adaga ainda nas mãos, mas estou dolorosamente consciente de que não serve para nada.

A coisa se coloca em pé com um rosnado, se vira na minha direção e sorri.


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