Vidrados - Morphine Epiphany
Vidrados
Morphine Epiphany
Josuel acompanhava a chegada da noite com seu
andar compassado. O suor descia pela sua testa e o acelerar de seus batimentos,
lhe deixava com um sabor extasiado na alma. Carregava um saco nas costas. O
odor vibrante do escarlate que vinha do saco, penetrava pelas suas narinas de
forma saborosa.
Enquanto caminhava, as poucas árvores e o
silêncio lhe faziam companhia. Morava em uma região isolada. Para encontrar
algum vestígio humano, precisava caminhar por longos minutos. Era comum passar
um carro ou outro, geralmente com viajantes perdidos ou necessitando de
combustível ou abrigo.
Ele se aproximou da casa e chegou até a porta.
Tirou a chave do bolso e colocou na fechadura. Entrou e não se incomodou com o
odor fétido que a casa exalava. Se dirigiu até o andar de cima. Tropeçou nos
degraus da escada apodrecida.
O corredor possuía um cheiro insuportável e os
ratos desfilavam pelo assoalho naturalmente. O homem chutava os ratos e abria
caminho até chegar ao seu destino.
O quarto estava com a porta entreaberta. A voz
cansada de uma mulher reclamava das horas. Josuel ficou aborrecido, mas pediu
desculpas e adentrou o quarto. A mulher ordenou:
— Coloque no canto esquerdo da estante!
O homem abriu o saco e retirou a primeira cabeça
ainda suja de sangue e a colocou na estante. Quando suas mãos seguravam a
segunda cabeça, a mulher o interrompeu:
— Espere! Me deixe dar uma olhadinha!
Ele então, entregou a cabeça. A senhora com
olhos mortos e a visão meio turva, apreciou o que viu. Sentiu o odor escarlate
e fechou os olhos, como se estivesse inalando um prato apetitoso.
Uma espécie de saudosismo tomou conta do
semblante da senhora. Josuel soltou um pequeno sorriso, enquanto olhava a
calmaria no rosto daquela mulher. A quietude durou algum tempo e aos poucos,
ela voltou para a realidade. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Ela tocou a
mão de Josuel e fez um pedido:
— Deixe-a comigo! Me fará companhia durante a
noite!
Josuel recolheu o saco agora vazio, deu um beijo
na testa da mulher e pronunciou bem baixinho:
— Boa noite, mãe!
Ele olhou para a mãe por alguns instantes e
depois saiu do quarto. A mulher ficou contemplando a estante recheada de
cabeças masculinas, todas com os olhos arregalados em sua direção. Ela admirava
sua tenebrosa coleção com entusiasmo. Ficou ali durante algum tempo e quando a
exaustão noturna chegou, se despediu das centenas de olhares sombrios.
A cabeça que Josuel deixara em suas mãos, foi
acomodada no lado esquerdo da cama. Ela se sentou no lado direito e beijou uma
fotografia na mesinha de cabeceira. Era uma fotografia envelhecida de um homem.
Soltou um suspiro cansado e disse:
— Boa noite, meu doce Armando! Tenha bons
sonhos, querido!
Deitou-se e ajeitou a cabeça suja de escarlate
ao seu lado. Deixou a cabeça com os olhos vidrados em sua direção. Deu um beijo
na testa cadavérica e disse:
— Boa noite, meu doce Armando! Tenha bons
sonhos, querido!
Comentários
Postar um comentário